segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A China e o Mundo em Guerra pelas Matérias-Primas

Por: Vitor M. Trigo
vítor.trigo@gmail.com
03 Setembro de 2010

Para conduzir um país a um crescimento consistente de dois dígitos anos a fio, há que planear bem – conceber estratégias e ser capaz de as por no terreno. É o que a China está a fazer há tempo. O despontar da China como potência mundial não é fruto do acaso.
A China não dispõe de matérias-primas nem fontes de energia em quantidade suficiente para sustentar este crescimento, pelo que tem de as adquirir no exterior. Não é a única nação a fazê-lo. Tem de enfrentar concorrência feroz, mas, ciente das dificuldades fá-lo de forma bastante peculiar.
O mundo ocidental habituou-se a tirar partido das antigas relações coloniais, procurando perpetuar vantagens de que já não dispõe. A China, que não tem passado colonialista, optou pela via de parcerias sem resquícios de prepotência, de preferência estado-a-estado sempre que for possível ou, em alternativa, fixando acordos com empresas estatais. Só em última instância negoceia com multinacionais. É desta forma que a China tem vindo a conquistar ex-feudos de americanos e alemães, nomeadamente na América do Sul e em África, onde os países estavam saturados de posições negociais sobranceiras. Tudo isto é articulado com uma peculiar política de divisas, em especial no que se refere à cotação do yuan.
É disto que o presente artigo trata.

Estratégia significa planificação a longo prazo

Como parece difícil aos políticos ocidentais estabelecerem políticas a 10 ou 20 anos, quando foram eleitos para mandatos de 4 ou 5. A China não sofre dessa debilidade, colhe vantagens da estabilidade política de que desfruta. Planeia e cumpre. Poderá comentar-se e contestar-se a legitimidade democrática que permite esta continuidade tão persistente, mas este não é objecto deste artigo, pelo que não encontrará aqui espaço.
É claro que as fortes tradições chinesas constituem contratempos de monta, em especial para os estrangeiros que pretendem fixar os seus negócios na China, situação que as autoridades actuais parecem querer contornar através de medidas pragmáticas que se impõem.
Está distante a China de Marco Polo, presa fácil das artimanhas dos comerciantes venezianos. Hoje a China sabe exigir a quem quer investir no seu território, e lidar com os seus pares nas praças internacionais.
A China tem um objectivo estratégico inequívoco – a sustentabilidade energética e o acesso continuado e crescente às matérias-primas de que necessita. O apoio às empresas estrangeiras que têm permitido o exponencial crescimento chinês é meramente instrumental.
Vejamos, então, com alguns exemplos como a estratégia chinesa para cada um dos pilares está ser colocada no terreno.

A estratégia da China para a energia

A China possui planos bem definidos, por vezes a mais de 30 anos, para garantir o acesso ao petróleo, gás natural, carvão e urânio. Como referido, as relações comerciais preferenciais que estabelece são estado-a-estado ou com empresas estatais, o que facilita esta metodologia pouco cara às multinacionais. O espaço de manobra é global e o país não se deixa intimidar com possíveis obstáculos de natureza não comercial. Assim, não hesita em estabelecer fortes parcerias multidisciplinares com regimes censurados pela ONU e por partes significativas da comunidade internacional (Sudão, Gabão, Congo, Angola, Cuba, ou Venezuela), em aceitar preços de compra considerados acima do mercado (Sudão, ou Brasil) eliminando possíveis concorrentes graças às incomensuráveis somas de dólares de que dispõe, em operar em territórios onde as práticas de exploração de recursos humanos incluem o controlo armado dos trabalhadores (Nigéria, ou Sudão). A China também não hesita em estabelecer relações com países (Irão, Iraque, Venezuela, ou Cuba) desafiando os interesses políticos norte-americanos. E é claro que estes negócios incluem venda de armas e tecnologia militar, mesmo a países envolvidos em guerras hediondas e confrontos étnicos.
Business is Business.

Eis alguns exemplos:
- A SINOPEC [1] contratou a aquisição de 100 mil milhões de dólares de gás ao Irão por um período de 30 anos, comprometendo-se a colaborar no desenvolvimento da indústria petrolífera deste país;
- A China assinou acordos de pagamento de importações chinesas para a Venezuela a serem pagos por 20 mil milhões de dólares de produtos petrolíferos exportados para a China. Este acordo inclui o estatuto de parceiro preferencial concedido à China para explorar novas jazidas de gás [2];
- Parceira para pesquisa petrolífera e construção de oleodutos no Brasil. Analistas consideraram que os valores envolvidos atingiram o triplo do valor razoável de mercado [3];
- Acordo sino-japonês para a compra de petróleo siberiano. Registe-se que, a partir de 2005, a China ultrapassou a quota do Japão na aquisição de petróleo da Sibéria. O pipeline que irá transportar cerca de 15 milhões de toneladas de petróleo russo por ano e o contrato de fornecimento do combustível foi assinado, em 28 Agosto de 2010, por um prazo de 20 anos [4];
- Acordo de cooperação da SINOPEC com a Sonatrach (a companhia argelina de investigação para a exploração petrolífera [5];
- Acordo com a Austrália no domínio da pesquisa e exploração de jazigos de urânio, fundamentais para a concretização da rede de centrais nucleares chinesas em construção [6];
- Parceria estratégica com a BHP na tentativa de domínio do mercado mundial de carvão de coque (a BHP detém uma quota de 30% do comércio mundial de carvão) [7].

A estratégia da China para os metais (matérias-primas)

A estratégia chinesa para as matérias-primas é semelhante à adoptada para a vertente energética [8] - Objectivos de longo prazo. Os chineses facultam tecnologia para o desenvolvimento dos países onde querem obter matérias-primas, procurando parcerias directas com os estados ou empresas estatais, cuidando da não interferência política, no que se distanciam dos seus concorrentes, nomeadamente os USA. Esta faceta não colonizadora é muito apreciada pelos países de menor poderio internacional.

Aqui estão alguns exemplos:
- Cobre: A empresa chinesa Minemetals acordou com o grupo chileno Codelco, que produz 12% do cobre mundial, um contracto de 2 mil milhões de dólares, pelo fornecimento anual de 25,000 toneladas de cobre. Este acordo prevê também a opção de compra de mais 150,000 toneladas noutras minas chilenas [9] [10];
- Níquel: Acordo entre Cuba e China para a extracção e a produção de níquel em Cuba [11]. Nesta iniciativa está também envolvida a Venezuela que colabora com Cuba na construção das fábricas transformadoras ;
- Minério de ferro: Neste mercado a China abriu uma excepção (a tal foi obrigada por ausência de alternativas), e estabeleceu acordos com multinacionais, em especial as anglo-australianas BHP e a Rio Tinto [12];
- Alumínio: A China patrocinou um consórcio para produção de alumínio com os Citigroup e a Alcoa, entre outros parceiros [13].

A estratégia da China para o yuan

Como já foi referido, a China tem vindo a ser inundada por torrente incríveis de dólares, há muitos anos. Esta situação permiti-lhe um desafogo financeiro tremendo, permitindo-lhe oferecer condições inatingíveis pelos concorrentes mercados internacionais. Os outros países têm vindo, por isso, a pressionar as autoridades chinesas para que reavaliem o yuan para o seu real valor, ou seja, em alta [14]. Obviamente que aos chineses tal alteração não convém. Preferem uma situação de flutuação controlada, variando em função do valor do dólar norte-americano. E a China tem hoje um peso na economia mundial que lhe permite ignorar estes apelos.
No mesmo sentido, tem-se verificado uma insistente redução de taxas aduaneiras que protegem as transacções de produtos chineses com o exterior.
Esta conjugação de políticas confere à China uma incrível vantagem concorrencial,
A sua política monetária (incluindo os metais preciosos – ouro, prata, platina, e outros) está perfeita coordenada com as necessidade de compras de matéria-prima e energia, garantindo o abastecimento futuro. Não é de esperar que a China modifique estes procedimentos enquanto não tiver necessidade disso. É a China e não os seus concorrentes que ditarão essa hora. Todos o parecem reconhecer.
Mas, de facto, um yuan sobrevalorizado também interessa ao dólar americano [15], em particular nas transacções que envolvam euros. Moeda alta também significa maior poder de compra da população, e isso significa mais importações, e, portanto mais escoamento de produtos e serviços americanos na China. Uma vez mais a Europa sente-se entre dois fogos.

Forças armadas chinesas

Numa análise deste teor a questão militar não pode ser ignorada.
Os impérios coloniais europeus foram sempre construídos com base no domínio dos mares. Esta situação de privilégio começou no século XV e permitiu à Europa ser o centro do mundo durante 500 anos.
O século XX, e em particular a I Grande Guerra com a queda dos três grandes impérios, viria a alterar o rumo dos acontecimentos. A II Grande Guerra e a entrega dos portos ingleses aos norte-americanos em troca de contratorpedeiros e demais equipamento naval, viria a justificar o nascimento duma potência com poder sem precedentes sobre todo o mundo – os USA. Também este poder imenso foi conquistado à custa do controlo de todos os mares, algo que nunca nenhuma potência havia alcançado.
A China, neste palco, evidencia uma grande debilidade. A sua marinha está obsoleta e é incapaz de exercer controlo efectivo das rotas marítimas mesmo no Pacífico noroeste e oeste, onde, em certa medida o Japão e principalmente os USA, mostram enorme superioridade. Repare-se que só agora, Abril de 2010, a China anuncia ter capacidade para construir o seu primeiro porta-aviões [16]. O “tigre de papel” tarda em mostrar as unhas de forma convincente.
O poder militar das nações mede-se hoje mais em termos de tecnologia disponível e treino do pessoal do que pelo número de efectivos, pois no século XXI as guerras de ocupação parecem ser algo do passado. No entanto, os números ainda dizem alguma coisa no contexto das relações internacionais.
Veja-se, a propósito, o quadro comparativo entre USA e China (esta entre parêntesis): Exército – 538,000 (1,700,000), Marinha – 332,100 (250,000), Força Aérea – 351,400 (400,000), Tanques Pesados – 8,000 (7,200), Veículos Blindados Leves – 22,000 (4,500), Porta-aviões – 12 (0), Submarinos – 72 (69), Fragatas – 30 (42), Helicópteros – 5,600 (488), Aviões – 5,300 (2,600). [17]
A China vai, por certo, ter de investir nas forças armadas, como forma de ser uma voz incrementalmente mais interveniente no panorama político internacional.
O poder militar transmite a uns medo, a outros respeito, e a outros ainda protecção. Nesta luta a China ainda está longe de poder ombrear com os USA, mas não pode atrasar-se mais.
Contudo, terá de ter em atenção que foi neste domínio, forçando-a a uma incrível e financeiramente desastrosa corrida aos armamentos, que os USA levaram a ex-URSS ao tapete.
Sou de opinião que os chineses não se deixarão envolver na mesma cilada, mas desconfio que os USA terão outras armadilhas para utilizar. 

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NOTAS:

[1] SINOPEC é a designação comercial de China Petroleum & Chemical Corporation, http://english.sinopec.com/about_sinopec/
[2 ] http://www.agenciafinanceira.iol.pt/empresas/petroleo-oil-venezuela-china-crude-agencia-financeira/1155954-1728.html
[3] http://economia.estadao.com.br/noticias/economia,chineses-vao-explorar-petroleo-no-brasil,not_13525.htm
[4] http://darussia.blogspot.com/2010/08/vladimir-putin-inaugura-oleoduto-entre.html
[5] http://goliath.ecnext.com/coms2/gi_0199-2472192/ALGERIA-Zarzaitine-Sinopec.html
[6] Consultar descrição da parceria, aqui: http://www.pucminas.br/imagedb/conjuntura/CNO_ARQ_NOTIC20060425104526.pdf?PHPSESSID=ee4211abf15f85969bdaa4a31d4d6f50
[7] http://www.bhpbilliton.com/bb/home.jsp
[8] Ver a propósito o que escrevi em 27 Agosto de 2010, neste blogue http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/08/china-segunda-economia-mundial.html
[9] http://www.accessmylibrary.com/coms2/summary_0286-19242441_ITM
[10] http://www.wharton.universia.net/index.cfm?fa=viewArticle&id=1028&language=portuguese
[11] Cuba possui as segundas maiores reservas de níquel a seguir ao Zaire: http://lanic.utexas.edu/project/asce/pdfs/volume18/pdfs/cepero.pdf e http://veja.abril.com.br/noticia/economia/china-e-cuba-assinam-acordo-para-impulsionar-cooperacao-economica-e-tecnica
[12] O aumento da produção de ferro na China já provocou um aumento de 23% nos preços praticados pela BHP e Rio Tinto, para o período de Julho a Setembro de 2010-09-03: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/746820-bhp-e-rio-tinto-buscam-aumento-de-23-para-o-minerio-de-ferro.shtml
[13] http://www.alcoa.com/china/en/info_page/home.asp
[14] As pressões para que a China revalorize o yuan são constantes: http://money.cnn.com/2010/06/21/markets/currency_china_yuan/index.htm
[15] http://money.cnn.com/2010/06/21/markets/currency_china_yuan/index.htm
[16] Entrevista do almirante Wu Shengli à agência noticiosa oficial chinesa http://money.cnn.com/2010/06/21/markets/currency_china_yuan/index.htm
[17] http://www.militarypower.com.br/mundo.htm

2 comentários:

  1. Este é que é o célebre blogue secreto do Vítor Trigo?
    Parabéns pela análise, bem estruturada e bem fundamentada!
    Um abraço

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  2. Fiquei satisfeito, Manel, por teres gostado.
    Este blogue não é secreto, embora saiba que o disseste a brincar.
    Como te disse, uso-o para que não se perca o que vou estudando e pensando. Obviamente que quem escreve não o faz só para si mesmo.
    Por issto tb, obrigado pelo teu comentário.
    Abraço.

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