sábado, 23 de outubro de 2010

Leve que é garantido, é "Made in China"

Por: Vitor M. Trigo
vitor.trigo@gmail.com
23 Outubro de 2010

“Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe” parecem pensar as autoridades chinesas ao perspectivarem a desafiante transição que o país tem de fazer a curto prazo – da produção em massa para a produção de qualidade.
O professor Fan Gang, personagem de topo dos meios económicos chineses [1], pronunciou-se recentemente sobre a esperança que tinha de ver a China libertar-se o quanto antes do paradigma da produção baseada nos baixos salários e embarcar no próximo estágio de desenvolvimento [2].
Com os custos de produção a aumentarem rapidamente por força da escassez de trabalho persistente e das reivindicações das massas trabalhadoras por melhores retribuições [3], a fim de poderem acompanhar a evolução do custo de vida, as autoridades chinesas não parecem dispor de muitas alternativas. Há uns meses atrás verificaram-se mesmo importantes greves que indiciaram o novo perfil laboral no país – significativas deslocalizações, do litoral para o interior e mesmo para outras geografias como o Vietname [4] e o Bangladesh, começaram a tornar-se habituais.
Como já afirmei anteriormente: dir-se-á que “a China ensaia a mudança da estratégia económica, e o mundo aguarda impaciente” [5]. Pensar que tal mudança só diz respeito aos chineses é um erro enorme. Uma vez mais, a evolução chinesa vai modificar as nossas vidas. Quando? Diria que já.
Estes são dois exemplos das profundas alterações que estão em curso no tecido empresarial chinês:
Durante anos, a Philips e outras empresas ocidentais deslocalizaram para a China, região de Dongguan [6], parte significativa da produção de aspiradores domésticos e escovas de dentes eléctricas. A empresa chinesa que foi constituída para o efeito chama-se Kwonnie Applied Electrics, e cresceu imenso por força desta parceria [7]. Pois, como o jornal The Straits Times de Singapura relata em 17 de Setembro deste ano [8], a Kwonnie acaba de decidir iniciar a produção e comercialização das suas próprias linhas de electrodomésticos.
"Muitos clientes irão ficar insatisfeitos com a decisão de competirmos com eles", disse o Sr. Kwok, que é de Hong Kong e fundador da Kwonnie. "Mas não temos escolha." [9]
Há razões evidentes para decisões estratégicas semelhantes a esta que estão a ocorrer por todo o lado: (1) o aumento dos custos da mão-de-obra irão elevar os preços finais, e, portanto, a competitividade do modelo económico actual irá falir a curto prazo; (2) a China decidiu tornar-se, o quanto antes, um país inovador, abandonando a imagem de gigantesco produtor de “produtos ocidentais”, como espera o professor Gang atrás citado.
Outro exemplo é o grupo TAL [10], referido pela IBM como case-study. Justificação? “Um dos pioneiros na adaptação da indústria do vestuário para a gestão da cadeia de abastecimento (SCM) em todo o mundo”. [11]
A TAL teve de enfrentar, a partir de 2008, uma firme luta para se manter competitiva face ao aumento dos custos do trabalho, a revalorização do yuan, as greves laborais e os mais apertados controlos contra a poluição [12], despertando por isso a atenção do mundo dos negócios. O grupo tem sede em Hong Kong e é famoso pela produção de camisas (t-shirts). Calcula-se que 8 em cada 10 t-shirts vendidas nos USA sejam feitas pela TAL [13].
A partir do momento em que se começaram a verificar as primeiras retracções de investimentos em Dongguan, criaram-se dois enormes problemas: (1) as empresas querem sair da zona e encontram enormes dificuldades em encontrar no interior as competências de que necessitam; (2) as autoridades locais, que assumiram compromissos baseados em estimativa de receitas, receiam a partida dos contribuintes e a consequente quebra de receita nos impostos. Recorde-se que aqui estão presentes empresas tão globais como Sony, Burberry, ou HP. São hoje 15,000 e, entre elas, a TAL. Ninguém tem dúvidas que algo de fracturante irá aqui acontecer, e noutras áreas muito sensíveis às migrações - em Qingxi, por exemplo, os trabalhadores migrantes representam 90% dos 350,000 residentes.
Contudo, o problema mais grave parece ser que o capitalismo chinês começa a virar-se para outras geografias bem distantes, talvez onde não se tivesse ainda pensado – os recentes países da UE Central e de Leste, em particular a Polónia e a Ucrânia, como consta de várias revistas de negócios ocidentais [14]. Pela profundidade e complexidade do tema e pelas implicações político-militares desta opção deixarei este assunto para texto a ele especificamente dedicado.
Atente-se nas palavras de Zhu Guorong, Vice-Director do Instituto para a Cooperação Económica de Qingxi – “Todas as empresas querem agora ser companhias de alta tecnologia, e nós queremos encorajá-las nesse sentido” [15].
Alguma dúvida acerca do caminho que a China renovada já encetou?
Eu acho que é uma questão de tempo e dinheiro. Como dinheiro não falta na China, e o tempo é bem escasso nas outras bandas, nomeadamente na EU, está próximo o dia em que ouviremos com a maior das naturalidades – “Pode levar senhor cliente, é bom material, é “Made in China””.


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NOTAS:

[1] Fan Gang é Professor de Economia na Universidade de Pequim e na Academia Chinesa de Ciências Sociais, Director do Instituto Nacional Chinês para a Pesquisa Económica, Secretário-geral da Fundação para a Reforma da China, e membro do Comité para a Política Monetária do Banco Popular da China.
[2] http://www.project-syndicate.org/commentary/gang11/English
[3] http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/08/os-custos-de-producao-na-china.html
[4] http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/09/vietname-uma-nova-china.html
[5] http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/09/estrategia-economica-chinesa-ensaia.html
[6] Dongguan, fica no sul da China, província de Guangdong na costa leste do Rio Pérola, é das que mais cresce, de 1 milhão para 6.5 milhões de habitantes, desde que em 1979 o governo chinês iniciou as reformas económicas. Aqui operam 15,000 empresas internacionais. http://www.bobpearlman.org/Strategies/Dongguan.htm
[7] Só este complexo referido emprega mais de 3000 trabalhadores.
[8] http://admpreview.straitstimes.com:90/vgn-ext-templating/v/index.jsp?vgnextoid=533aaa9ad7b1b210VgnVCM100000430a0a0aRCRD&vgnextchannel=f511758920e39010VgnVCM1000000a35010aRCRD
[9] ver link indicado em [8]
[10] O grupo TAL (Textile Alliance Limited) foi fundado em 1962. Ver http://www.nytimes.com/2010/09/16/business/global/16factory.html?pagewanted=all
[11] http://www-07.ibm.com/hk/e-business/case_studies/manufacturing/tal.html
[12] http://www.talgroup.com/en/docs/20090204JustStyle.pdf
[13] http://www.just-style.com/analysis/tal-apparel-sews-up-asian-clothing-market_id92380.aspx
[14] http://www.metrolic.com/chinese-investments-targeted-at-central-and-eastern-europe-132361/
[15] http://www.nytimes.com/2010/09/16/business/global/16factory.html?pagewanted=2
Ver também como o TGV chinês, segundo notícia da Lusa de hoje, se prepara para assumir a liderança mundial no sector, em http://diariodigital.sapo.pt/dinheiro_digital/news.asp?section_id=20&id_news=145789

2 comentários:

  1. Excelente artigo, Vitor. Ando desde 2006, quando visitei a China pela primeira vez, a falar destas coisas.
    Durante muito tempo sentia-me a pregar no deserto.
    É muito comum as pessoas pensarem que, por nós percebermos a grandeza deste fenómeno, desculpamos ou apoiamos os erros e as violências que se praticam na China.
    Mas uma coisa não impede a outra.

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  2. Obrigado Fernando. Ainda bem que gostaste.
    Eu, de facto, nunca fui um fã da China, nem dos métodos que continua a acomodar. Mas tal não quer dizer que não reconheça as enormes capacidades que os chineses têm demonstrado. Pelo contrário.
    Os meus textos sobre a China, como já reparaste por certo, visam dois grandes objectivos:
    (1) Abordar as diversas vertentes das transformações que o país está a encetar, relacioná-las para que se percebam (não aprecio o estilo curto e polémico), e como tudo isto irá afectar o mundo em geral;
    (2) Tentar perceber os novos caminhos do imperialismo, num momento em que (provisoriamente) só existe uma super-potência.
    Ao documentar tudo o que afirmo, pretendo fugir a especulações, o que torna os artigos um pouco longos.
    Mas quem se interessa por este tipo de assuntos, não toma esta opção como uma "chatice", antes como valor acrescentado.

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