sábado, 29 de janeiro de 2011

CHINA – De Deng Xiaoping a Hu Jintao, O "Grande Salto"

Por: Vitor M. Trigo
vitor.trigo@gmail.com
29 Janeiro de 2011


A China do “Grande Salto” começou em 1978

Pequim, 13 de Dezembro de 1978, reunião do plenário eleito no XI Congresso do Partido Comunista Chinês de 1977. Eram 169 dirigentes efectivos e 112 suplentes do PCC, todos formados segundo os ensinamentos do fundador da Nova China, emancipada após a vitória de Mao Zedong, e das históricas palavras que proferiu na praça Tiananmen no dia 01 de Outubro de 1949: “O povo chinês levantou a cabeça”.

De 1949 a 1977, a China conheceu profundas movimentações políticas e económicas, de que se destacam o falhado plano de 1959 visando a industrialização do país, as obscuras e sangrentas iniciativas dos Guardas Vermelhos e “sua” Revolução Cultural, terminando no que ficou conhecido como a tentativa de golpe de estado do “Bando dos Quatro”, em que pontificava a viúva do Grande Timoneiro Mao, que havia falecido a 09 de Setembro de 1976, quando já se encontrava muito debilitado mas, apesar disso, com as rédeas do poder nas mãos.

Naquele dia de Dezembro de 1978, a tensão era grande – tratava-se de decidir entre o projecto de continuidade de Hua Guofeng e a mudança proposta por Deng Xiaoping, apontado pelos conservadores como “o homem que iria destruir o socialismo”. Quando Deng falou aos congressistas em “libertar a mente, pôr o cérebro a funcionar, procurar a verdade, e reforçar a solidariedade”, todos perceberam que a China se iria libertar do atavismo imposto pelo “Bando dos Quatro” liderado por Lin Biao, que a meritocracia venceria a burocracia, que a descentralização iria começar, ainda que muito controlada pelo poder, e que a abertura ao progresso e ao desenvolvimento iriam ser primordiais, mesmo percebendo que alguns dogmas sagrados teriam de ser questionados e ultrapassados.

Uma nova China acabara de despontar. Fortemente nacionalista, é certo, ainda hoje o é, mas finalmente aberta ao exterior. É atribuída a Deng Xiaoping esta elucidativa frase: “Quando se abrem as janelas no Verão, juntamente como ar fresco entra sempre alguma mosca”. Desta forma simples, Deng preparava o seu povo para os percalços que iriam inevitavelmente surgir.


E que gigantesco foi o “Grande Salto”

Este artigo não visa descrever o circuito político percorrido pela China desde 1978, mas antes relevar algumas das mais significativas mudanças que o país China conheceu nos últimos trinta anos.

- Em 1978, a China era uma economia completamente fechada. Em 2010, tornou-se na segunda economia mundial, à frente da ex-super-potência regional Japão, como aqui referi;

- Em 1978, toda a produção industrial chinesa era estatal. Em 2010, cerca de metade é privada, em parte assegurada por empresas estrangeiras ou capitais estrangeiros;

- Em 1978, o sistema bancário era fechado e obsoleto. Em 2010, é moderno, adaptado às necessidades de investimento, e ao controlo inflacionário que o enorme desenvolvimento poderia provocar. O volume de depósitos de que dispõe é hoje cerca de 900 vezes o que era há trinta anos;

- Em 1978, o PIB per capita era 40 vezes inferior ao actual nas zonas urbanas e 30 vezes nas rurais. Veja aqui como a China está a descolar dos níveis de pobreza de outras zonas do globo. Para melhor referência, neste artigo encontrará os PIB e PIB per capita em diversos países;

- Em 1978, perto de 80% da população chinesa vivia no campo. Em 2010, a China tem 117 cidades com mais de 1 milhão de habitantes, sendo que em 13 delas habitam mais de 4 milhões;

- Em 1978 não existiam centrais nucleares. Em 2010 há 11 e outras tantas estão em construção. Para além disso, a China já ocupa lugar de relevo nas áreas de novas tecnologias e energias limpas;

- Em 1978, existiam menos de 1.5 milhões de veículos em circulação (excluindo motociclos). Hoje, esse número excede 40 milhões;

- Em 1978, a China dispunha de pouco mais de 160 mil licenciados. Actualmente licenciam-se mais de 4 milhões por ano.


Capitalismo ou Socialismo? Esta não é a questão

Os números são, de facto, impressionantes. Para aquém e para além deles, muito fervilha neste imenso país que parece devotado ao crescimento imparável.

Deng Xiaoping, que irá ficar para a história como o pai da mudança e o arquitecto do desenvolvimento, disse um dia que a diferença entre capitalismo e socialismo não se resumia a contrapor a economia de mercado à economia planificada, mas antes na exploração do homem pelo homem (a tradicional bandeira marxista) contra a libertação do homem. Poderia assim dizer-se que se o capitalismo é opressão por excelência, a China iria promover a emancipação do homem na base dos seus direitos naturais. Grande evolução se verificou na China desde 1978, sem dúvida. Mas o leitor ajuizará sobre o que ainda hoje são os direitos humanos neste país.

Actualmente poucos duvidam que a China é um país capitalista sob regime comunista. Alguns ousarão mesmo dizer que aqui se encontra um novo estádio do capitalismo, a salvação do capitalismo, e outras figuras retóricas. Pessoalmente, prefiro classificar o que se está a construir na China como super-capitalismo. Dito doutra forma, se o capitalismo é opressor, o que aqui se está a testar é uma fase superior de opressão. Porquê? Porque aqui a autoridade não se preocupa em mostrar as flexibilidades, mesmo que não reais e genuínas, que os países ocidentais não dispensam para sua promoção.


As cinco gerações de políticos chineses

Desde 1978, exerceram o poder três gerações de políticos –

Deng Xiaoping, que ousou definir o “Grande Salto em Frente” teorizado pelo VIII Congresso do PCC, e que rompeu definitivamente com o culto da personalidade de Mao Zedong “O Grande Timoneiro”, grande responsável pelo isolamento do ap´si ao mundo;

Jian Zemin, de certa forma um outsider, por não ter sido preparado pelo núcleo central do PCC, que foi capaz de conter a espiral inflacionista que a deriva capitalista iniciada com Deng estava a gerar, e que introduziu a Teoria das Três Representações - O Partido é a Vanguarda Cultural, detém os Interesses Fundamentais do povo, e corporiza as Forças Produtivas mais Avançadas;

Hu Jintao, um ex-dirigente da Escola Central do Partido, não deixou cair a Teoria das Três Representações. É um tecnocrata, um diplomata, um moderado. Não hesitou em citar Adam Smith, praticar jogging, jogar bridge, misturando prazer com instrumentalismo. Corre mundo, e leva os interesses comerciais chineses a toda a parte – é o paradigma do dirigente da globalização, um actor global. Mostra a China como um país respeitador dos interesses dos países parceiros, evidenciando a distinção para a tradicional ingerência característica dos países ex-colonialistas. Internamente, introduziu dois novos conceitos – a “Visão Científica do Desenvolvimento”, onde pontificam a sustentabilidade, o equilíbrio social, e a compatibilidade entre ambiente e bem-estar económico; e a “Construção da Sociedade Socialista Harmoniosa”, em que compatibiliza as teses marxistas com as teorias confucianas.

Os anos de 2012, eleição do novo Secretário-Geral do PCC, e de 2013, eleição do novo Presidente da RPC, conduzirão ao poder a Quinta Geração de dirigentes pós-revolução. Os seus nomes são conhecidos Xi Jinping, douturado em ciências sociais, e Li Keqiang, licenciado em direito. Deles se espera muita coisa, a começar pela substituição duma gestão tecnocrata (Hu Jintao e Wen Jiabao) pelo primado das leis. Hu Jintao passar-lhes-á intacto, e reforçado pelo XVII Congresso do PCC, um importante legado teórico, vínculo contínuo do PCC, conhecido por “Quatro Princípios Cardinais” – (1) O Marxismo-Leninismo; (2) A Ditadura do Proletariado; (3) Os Pensamentos de Mao Zedong; (4) A Liderança do Partido Comunista. Que irão fazer com eles, Xi e Li?


Até às eleições, é preciso atravessar 2011

Este mês, o director do escritório da McKinsey em Xangai, publicou na sua habitual coluna o que considera serem as seis principais notícias com que a China iria surpreender o mundo (a expressão surpreender é dele). O prestígio da organização que serve e a sua própria experiência pessoal mereceram-me a seguinte reflexão:

1. Aumento dos preços dos produtos alimentares
A questão não é nova. Já começou a impactar a inflação e a merecer a atenção das autoridades, tendo sido já alvo de tratamento neste blog, por diversas vezes. A novidade poderá residir no efeito das medidas tomadas, que poderão não ter sido suficientes. Esperam-se medidas mais estruturantes, ao longo de toda a cadeia de produção e distribuição, o que poderá vir a provocar alguma contestação social, algo não desejável em vésperas de mudança de dirigentes políticos. Se vierem a ocorrer manifestações populares, especula-se sobre o tipo de intervenção que as autoridades poderão adoptar (ver aqui como alguns teorizam em redor duma possível greve geral na China).

2. Falência dos apostadores em especulação imobiliária
Em Dezembro, quando abordei a evolução dos preços das habitações, referi o facto dos aumentos verificados estarem a caminho do insustentável. Embora o governo tenha tomado medidas junto da banca, pode existir já uma perigosa bolha imobiliária, cuja gestão tem de ser cuidadosamente acautelada. A ocorrência de falências dos investidores nesta área pode tornar-se inevitável, e não consta que as autoridades estarão dispostas a apoiá-los.

3. Reivindicações salariais
Em 2010 ocorreram aumentos salariais generalizados nas zonas urbanas. Também os salários mínimos foram actualizados (note-se que na China o salário mínimo é estabelecido por regiões). No mesmo período também se verificaram incrementos significativos na produtividade das empresas. Contudo, o custo de vida continua a aumentar. Este cenário, conjugado com a absoluta necessidade de aumentar a consumo interno, a fim de diminuir a dependência das exportações, irá penalizar o custo de vida, e, possivelmente justificando reivindicações salariais, ou seja, novo foco de turbulência social, que será, por certo, contido. Como?

4. Diminuição do crescimento económico
Em 2011 o PIB chinês continuará a crescer, mas menos do que nos anos anteriores, e provavelmente menos do que as previsões oficiais. A lenta recuperação mundial e a diminuição dos incentivos ao consumo de importantes mercados, como o uso de energias tradicionais e a aquisição de meios de transporte individuais, assim o fazem prever.

5. Intensificação da guerra das moedas
O yuan, na opinião dos governos estrangeiros, continua artificialmente desvalorizado em relação a outras moedas. Mas, este é um dos pilares da globalização chinesa – facilitar as exportações, limitar apoios às importações. A China continua a recusar corrigir a fundo esta relação. Fá-lo pontualmente e só quando isso lhe é indispensável. Actualmente, com as gigantescas divisas de que dispõe, e face à crise internacional designada com de “dívidas soberanas”, a China encontra-se em posição negocial de crescente força. Podem mesmo vir a verificar-se acrescidas exigências ao investimento estrangeiro no país, como sejam a imposição de parcerias e partilha de know-how.

6. Nova onda de privatizações
O caminho traçado está definido – o estado deverá diminuir a sua participação nas empresas. Sem hesitações, mas com segurança como preconizava Deng Xiaoping. O capitalismo chinês ganha terreno.


Good Bye Mr. Hu.
Welcome Mr. Li


A lista de previsões do senhor Gordon Orr não me pareceu especialmente interessante, apesar da sua reconhecida competência. Francamente, esperava mais. Mesmo assim, aproveitei-a para alguns comentários e uma certa ordenação de ideias, visto que a sua revista é lida por tantas pessoas.
Pessoalmente, penso que 2011 irá ser um ano de contenção em termos de grandes mudanças. Hu Jintao está em fim de mandato, e a sua preocupação parece ser a passagem de testemunho em boas condições. Aliás na linha da famosa resposta que deu, em 2006, ao jornalista que na Casa Branca lhe perguntou: “Presidente, quando é que a China se tornará numa democracia com eleições livres?”

O sagaz e diplomata presidente Hu, respondeu assim, segundo The Swamp: “Não sei o que o senhor entende por democracia. Posso dizer-lhe que nós, na China, sempre acreditámos que sem democracia não há modernização. Desde os anos setenta, quando arrancámos com a abertura ao exterior, lançámos as reformas económicas e, de forma adequada, a reestruturação política. No futuro, atentos às condições nacionais e à vontade do povo, prosseguiremos com a reestruturação política, alargaremos a participação dos cidadãos, ou seja, os indivíduos encontrar-se-ão em posição de exercerem melhor os seus direitos democráticos”.

Assim pensa e fala o líder da Quarta Geração chinesa da pós-revolução.

Esperemos para ver como pensa, fala, e age o líder da Quinta Geração.

2 comentários:

  1. Vitor, acerca do teu interessante texto apetece-me fazer um comentário sobre a dicotomia capitalismo/socialismo.
    No teu texto misturas de certa forma as características do regime político com a definição do modo de produção, para usar o termo marxista.
    É um erro muito comum, propiciado pela falta de rigor do discurso político, pensar-se que um novo modo de produção (por exemplo o socialismo ou o comunismo) resulta de actos insurreccionais ou revoluções.
    Mas tais transições são antes processos lentos de transformação das relações de produção normalmente associadas a transformações nas tecnologias.
    Por isso nunca houve, nem na China nem noutro local qualquer, aquilo que se pudesse designar como socialismo. Houve sim períodos, mais ou menos longos, em que o capitalismo foi posto entre parentesis mas sem a criação de qualquer alternativa sustentável.
    O socialismo e o comunismo, abandonadas as ilusões sobre a sua realização pela mera apropriação dos meios de produção pertencentes à burguesia, são hoje uma utopia indefinida que se resume ao anseio por uma sociedade de novo tipo.
    Ninguém sabe como, nem quando, se produzirá.
    Os políticos de trazer por casa, no BE e no PCP, omitem esta questão e vão entretendo o povo com a patranha do Estado Social, o que funciona como uma espécie de terapia de substituição

    ResponderEliminar
  2. Obrigado Fernando.
    Já calculava que este artigo te iria motivar a comentários. Quero sinceramente agradecer-te pois acho que enriqueceste o texto original.
    Como tenho esclarecido várias vezes, não pretendo com os meus textos criticar as posições políticas dos chinenes, antes tentar contribuir para que quem me lê possa perceber melhor o que se vai passando por lá, e que está a modificar uma gigantesca nação e o mundo em geral.
    Este artigo em particular, visou expor de forma simples porque a China evoluiu tanto em tão pouco tempo.
    O teu comentário/retificação de carácter mais ideológico do que o meu texto, precisa conceitos que não abordei, essencialmente para não alargar demasiadamente o artigo.
    Concordo totalmente com o que dizes, por isso te agradeço a preciosa intervenção.
    Nota: a "comparação" entre socialismo e capitalismo não é de minha autoria, mas de Deng Xiaoping. Minha é a classificação de super-capitalismo que usei para classificar o actual modelo chinês. Discutível apreciação, claro.
    Obrigado, mais uma vez.
    Penso que os leitores também apreciarão o teu comentário.

    ResponderEliminar