domingo, 31 de outubro de 2010

CHINA – o Monopólio de “Terras Raras”

Por: Vitor M. Trigo
vítor.trigo@gmail.com
31 Outubro de 2010


Antecedentes distantes e próximos

Os diferendos entre a China e o Japão são memoriais, mas ultrapassados estão os tempos em que o poderio militar japonês desbaratava as indefesas populações chinesas.
No rescaldo da Primeira Grande Guerra (IWW), o Japão sentiu-se prejudicado pelo Tratado de Versailles de 1919, que não lhe reconheceu as pretensões de “igualdade racial” (negado por britânicos e americanos) nem as “reivindicações territoriais” (contestadas pelos chineses), que almejavam por se considerarem como potência vencedora aliada. [1] Estas foram, aliás, apontadas como causas para o deflagrar da IIWW em 1939.
O diferendo entre China e Japão, embora só episodicamente armado, manteve-se latente durante o século XX, ganhando recentemente novos contornos com a ascensão da China ao segundo lugar das economias mundiais [2].
Os campos de batalha são múltiplos e a guerra politico-comercial está longe do fim. Um caso recente ocorreu com a colisão dum pesqueiro chinês, não com um mas com dois navios da armada japonesa (sintomático, não?), que foi explorado pelas duas potências para o que parecia ser o limite do razoável, mais parecendo retornar às disputas do início do século XX. Mas não, tudo tinha a sua lógica, e em causa estavam a disputa dos dois estados pelas matérias-primas, em zona marítima muito rica e por explorar, controladas pelo Japão e reclamadas pela China. [3]
Entre as medidas de retaliação que os chineses tomaram releva a interrupção de exportação de “Terras Raras”, abundantes na China, que são cruciais para a indústria de alta tecnologia japonesa.

O que são “Terras Raras”

Denomina-se por “Terras Raras” (Rare Earth Minerals) um conjunto de 17 minerais, da família dos lantanídeos, que são cruciais para a produção de praticamente todos os produtos de alta tecnologia, como computadores, painéis solares, turbinas eólicas, automóveis híbridos, e mísseis teleguiados.
Nos finais dos anos 1940, a maior parte da extracção de “Terras Raras” ocorria na índia e no Brasil. A partir da década de 1950, com a descoberta de importantes reservas na África do Sul, a produção descentralizou-se. Porém, tudo se alterou com a produção chinesa em larga escala, tornando todas as outras explorações inviáveis sob o ponto de vista económico. Hoje a China representa cerca de 95% dos depósitos de “Terras Raras” mundiais. [4]
A designação “Terras Raras” é comercial e não tem suporte científico sustentável, dado que existem na Terra em quantidades superiores à prata por exemplo. Quatro destes elementos mais comuns (Ítrio, Lantânio, Cério e Neodímio) estão disponíveis em maior volume do que, por exemplo, o chumbo. Contudo, o facto de não se encontrarem separados na natureza ajuda a justificar o nome porque são conhecidos.

Restrições à exportação de “Terras Raras”

A China é membro de pleno direito da OMC – Organização Mundial de Comércio – desde Dezembro de 2001. Ao aderir a esta organização, a China passou a ter de respeitar as suas regras tendentes ao comércio livre. Restrições à exportação não podem ser aceites e não o estão a ser. De facto, segundo as regras, a iniciativa chinesa de restringir exportações consubstancia uma violação grave do instituído. As nações comercialmente mais importantes começam a ficar impacientes. [5]

Que alternativas?

Os USA já decidiram reabrir as suas reservas, entretanto abandonadas por serem demasiadamente onerosas face aos preços praticados pelos chineses. Exemplo desta orientação é o projecto de reactivação dos depósitos californianos de Mountain Pass, praticamente parados desde 2005, conforme referido em Relatórios da Popular Science, Março de 2010 [6].
Os japoneses, limitados pela geografia e pressionados pelo peso da sua economia high-tech, procuram desesperadamente outras fontes. Exemplo disso é o interesse que, segundo a Reuters, a Toyota está a mostrar por um território junto ao Lago Thor, no Canadá, onde este fabricante de híbridos, em especial o modelo Prius, do qual espera vender em 2010 180,000 veículos só nos USA. [7]
Naturalmente, também a UE se manifesta preocupada com estas restrições e exclusiva dependência, e em particular a Alemanha. Segundo o New York Times de 22 Outubro de 2010, a Alemanha prepara-se mesmo para colocar a questão na próxima reunião do G20. Este país acusa a China de pressionar para maiores investimentos na China a quem quiser ter acesso a “Terras Raras”. No mesmo artigo, o jornal dá entretanto conta de recentes transferências de “Terras Raras” para os USA e UE. O embargo ao Japão parece, contudo, continuar. [8]

Outros cenários, outras estórias mal contadas

Vale a pena consultar um interessante artigo publicado pela IBM, patrocinadora da iniciativa SmartPlanet, intitulado “Afghanistan: the ‘Saudi Arabia’ of lithium?” [9]. Dele cito, sem comentar:
• Geólogos norte-americanos descobriram enormes depósitos minerais (possivelmente 1 trilião de US$) em todo o Afeganistão, segundo o New York Times
• Quanto ao lítio, um metal importante usado em baterias de carro e computador híbrido (…) tem uma estimativa de 5,4 milhões de toneladas
No mesmo sítio, SmartPlanet da IBM, pode ler-se sob o título “The US is sitting on a rare earth stockpile” [10]:
• De acordo com um novo relatório dos USA Geological Survey, os USA estão sentados sobre grandes reservas inexploradas (de “Terras Raras”) que poderiam servir como protecção contra uma escassez iminente
• A China indicou que pode parar a exportação de “Terras Raras” nos próximos 5 a 10 anos, por causa da procura interna
• Segundo estimativas do USGS, os USA detêm reservas de minério de terras raras que podem chegar a 13 milhões de toneladas (em 2009, em todo o mundo produziram-se 124 mil toneladas)
A política, e a sua componente militar, têm realmente muito para explicar acerca das questões económicas, mas raramente estão dispostas a fazê-lo.

Ao jeito duma típica conclusão norte-americana

Alexis Madrigal é editor sénior da TheAtlantic.com. e escreveu em 23 Setembro de 2010 sobre a questão China e “Terras Raras”, entre várias coisas interessantes, o seguinte [11]:
• Preocupados com o monopólio da China em elementos raros? Reiniciem a produção americana (título do artigo)
• Até a indústria de defesa americana depende de elementos “Terras Raras” chineses, de acordo com um relatório do Government Accountability Office de 2010
• “Eu acho que os políticos e as mentes financeiras americanas parecem ignorar completamente o que é fabricação ou exploração mineira. Eles só pensam que o dinheiro resolve todos os problemas”, citando Jack Lifton um reconhecido consultor de indústria extractivas
• “Nós realmente nos USA somos tolos. Desactivámos uma indústria que é estratégica e crítica, em nome do baixo custo. Agora estamos surpreendidos (…) Eu não estou surpreendido, nem ninguém o está na China”, novamente citando Jack Lifton

Ils sont fous, ces Romans… diria Asterix.  

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NOTAS:

[1] http://www.newworldencyclopedia.org/entry/Paris_Peace_Conference,_1919
[2] http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/08/china-segunda-economia-mundial.html
[3] http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/09/china-japao-o-equilibrio-instavel_27.html
[4] http://www.worldlingo.com/ma/enwiki/pt/Rare_earth_element
[5] http://www.voanews.com/english/news/asia/Lack-of-Rare-Earth-Could-Cause-Major-Problems-103898893.html
[6] http://www.popsci.com/technology/article/2010-03/shortage-rare-earth-minerals-may-cripple-us-high-tech-scientists-warn-congress
[7] http://www.allcarselectric.com/blog/1034759_al-gore-versus-the-rare-earth-metals
[8] http://www.nytimes.com/2010/10/22/business/energy-environment/22iht-rare.html
[9] http://www.smartplanet.com/business/blog/intelligent-energy/afghanistan-the-saudi-arabia-of-lithium/1549/
[10] http://www.smartplanet.com/business/blog/smart-takes/us-sitting-on-rare-earth-stockpile-says-usgs-report-hedge-against-looming-tech-shortage/4873/?tag=content;col1
[11] http://www.theatlantic.com/technology/archive/2010/09/worried-about-chinas-monopoly-on-rare-elements-restart-american-production/63444/

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

China “forçada” a dinamizar o consumo interno

Por: Vitor M. Trigo
vítor.trigo@gmail.com
27 Outubro de 2010

Quase todos os indicadores conhecidos mostram que a China parece ter passado incólume à crise global de 2008. De facto, o sistema que as autoridades pensaram e montaram (deve reconhecer-se que as coisas na China não acontecem por acaso, planeiam-se), resistiu muito bem ao choque de stress real a que foi sujeito. Mas convém também recordar que a China dispõe de recursos que sabe utilizar com mestria, nomeadamente a cotação do yuan, articulando-a com as restantes iniciativas estratégicas, como foi referido noutros artigos neste blog [1].
No entanto, o modelo que fez despertar o país e arrancar da pobreza milhões de pessoas caminha para o esgotamento, se as autoridades decidirem ser vítimas passíveis do futuro. Vários são os caminhos escolhidos para ultrapassar o que poderia vir a revelar-se um impasse que a China não pode tolerar [2]. Um deles, ainda pouco ventilado neste blog, passa pelo aumento do consumo interno que permita aliviar o país da enorme dependência das exportações, ou, se se preferir, mais blindado a crises exteriores. Mas esse crescimento tem de ser sustentável, o que não é tarefa fácil num país com tão grandes assimetrias, com fortíssimas culturas milenares, e um sistema político ainda monolítico.

Índices de Consumo na China

De acordo com a consultora McKinsey [3], o consumo privado na China totalizou 890 bUS$ em 2007, que colocou a China como o quinto maior mercado consumidor do mundo atrás dos USA, Japão, UK, e Alemanha. Este valor correspondeu a cerca de 36% do PIB. Comparando-o com as maiores economias mundiais, e ponderando as populações em causa, constata-se que corresponde a metade do equivalente nos USA e a cerca de 2/3 do Japão e da UE.
Contudo, ao mesmo tempo que o PIB chinês continua, há cerca de vinte anos, a mostrar crescimentos de dois dígitos, o consumo interno evidencia um decréscimo de 15 pontos percentuais desde 1990. Estes abrandamentos sendo normais em qualquer país em acelerado desenvolvimento, indicia na China justificada preocupação, pois confirma a extrema dependência do país às exportações. Refira-se, por exemplo, que no Japão e na Coreia do Sul, após a WWII, embora se tenham verificado quebras percentuais no consumo privado, este nunca desceu abaixo de 50% dos PIB respectivos.

Índices de Poupança na China

As famílias chinesas têm uma grande tradição de poupança – cerca de 25% do rendimento disponível, ou seja, cerca de seis vezes a taxa equivalente nos USA e três vezes a do Japão [5]. Um valor demasiadamente elevado para um mercado que pretende desenvolver a vertente interna. Algumas fontes apontam mesmo que a poupança familiar continua a crescer – 20% do PIB em 1981, 30% em 1988, e provavelmente cerca de 40% actualmente [6].
Um estudo do Global Institute da Mckinsey referiu, com base em dados do Gabinete de Estatísticas da China, como evoluíram as poupanças familiares entre 1996 e 1998, em percentagem do PIB [7]: Famílias Rurais: 18%, 23%, 26%; Famílias Urbanas: 19%, 19%, 21%. Efeitos da tradição onde ela é mais forte? Mas o país não pode crescer a velocidades tão distintas.
Bom, mas para além da tradição, existe uma razão que pode explicar os elevados índices de poupança – a insegurança das famílias. O sistema de assistência social e de reformas é ainda muito débil, e os seguros privados não fazem parte das opções disponíveis. Como tal as famílias vêem-se compelidas a assegurar a sua segurança. Melhorias nestas áreas, por parte do estado, poderão alterar o cenário – a diminuição da ansiedade pessoal quanto ao futuro poderá libertar os chineses para o consumo. Mas isso conduz a uma nova questão – quem suportará os novos custos de segurança social, da saúde, da previdência, das reformas por invalidez e velhice? O financiamento só pode vir das quotizações das empresas, das classes média e média alta, e da despesa pública.

Distribuição dos produtos e vendas a crédito

Para além das medidas estruturantes que o governo possa tomar para estimular o consumo privado, há que reformular toda a arcaica rede de distribuição de bens. A Mckinsey estima que o retalho, último elo da cadeia de fornecimento para mais de metade dos 1.3 biliões de chineses, só é responsável por cerca de 18% do consumo. Nas zonas urbanas este valor sobe para cerca de 50%, mas mesmo assim encontra-se muito abaixo das ditas sociedades desenvolvidas.
No que ao crédito diz respeito, a situação chinesa também é peculiar, mesmo quando comparada com outros BRIC. Na China calcula-se que se fique por 3% do PIB, enquanto a Rússia atinge 7%, e o Brasil 12%. Então em hipotecas de casa própria os valores da China comparados com os USA são inequívocos quanto à dinâmica dos mercados: 11% na China contra mais de 80% nos USA! [8]. Estamos, de facto, perante mercados em estados de desenvolvimento muito distantes.

Qual o futuro do consumo na China, afinal?

A actual economia chinesa é capital intensiva. Até ver, pode dizer-se que a aposta em empresas médias e pequenas têm merecido pouca atenção. Nas últimas duas décadas, e de novo segundo a McKinsey, o peso das empresas no PIB passou de 14% para 22%, ao passo que o valor referente às famílias desceu de 72% para 56%. Esta tendência não poderá manter-se.
É lógico pensar que a China não possa esperar desenvolver o mercado interno sem tomar medidas concretas que estimulem os salários, os serviços, as PME, e… os mercados de capitais. Este último ponto é muito sensível, dado o regime político vigente. Esperar que o consumo aumente para níveis sustentáveis, e de acordo com os rácios de equilíbrio desejados com as exportações, somente através do crescimento do PIB não é solução – mesmo com o PIB a crescer a dois dígitos, nos últimos anos o emprego só avançou 1%.

As mudanças de fundo

Dito isto, o país parece exigir uma profunda reforma política. Este é o grande óbice. As medidas económicas de curto prazo não indiciam, por enquanto, essa via. Quando se consultam os mapas de investimentos chineses, com facilidade se verifica que perto de 90% se destinam a infra-estruturas. É certo que o país precisa delas, pois mesmo após o gigantesco desenvolvimento das duas últimas décadas, as carências são ainda muitas. O preocupante, no que diz respeito ao incentivo ao consumo, é que dificilmente se descortinam nas grandes linhas do investimento previsto mais de 7 a 8% dedicados ao consumo privado.
Nos tempos mais recentes, a China tem surpreendido pela capacidade de promover reformas económicas radicais capazes de alcançarem os desafiantes objectivos nacionais a que o país se propôs.
Mas esta é uma mudança de paradigma, que exige abandono de algumas práticas inerentes ao regime político vigente. Conseguirá a China dar mais passos significativos no emblemático e até agora eficaz “um país, dois sistemas”? Irá a China surpreender os teóricos das ciências económica e política, obsoletando tudo o que tem populado os manuais clássicos?
Eu acredito que esta última hipótese pode vingar.

PS: Que implicações terá tudo isto no mundo inteiro? Esta análise será tema de artigo a dedicar exclusivamente ao tema.

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NOTAS:

[1] http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/09/estrategia-economica-chinesa-ensaia.html
http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/09/china-e-o-mundo-em-guerra-pelas.html
[2] Ver declarações do Professor Fan Gang, influente economista chinês: http://www.project-syndicate.org/commentary/gang11/English
[3] http://www.mckinsey.com/mgi/mginews/unleashing_chinese_consumer.asp
[4] What’s Your Consumption Factor? (artigo de Jared Diamond, publicado a 2 Janeiro 2008 no New York Times)
[5] Em www “Why is China saving rate high” encontra-se interessante reflexão sobre o tema
[6] http://finance.mapsofworld.com/savings/china/rates.html
[7] http://www.ucm.es/info/eid/pb/China2000.pdf
[8] Low Consumer Debt In China, 03 Agosto de 2010, http://www.parapundit.com/archives/007379.html

sábado, 23 de outubro de 2010

Leve que é garantido, é "Made in China"

Por: Vitor M. Trigo
vitor.trigo@gmail.com
23 Outubro de 2010

“Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe” parecem pensar as autoridades chinesas ao perspectivarem a desafiante transição que o país tem de fazer a curto prazo – da produção em massa para a produção de qualidade.
O professor Fan Gang, personagem de topo dos meios económicos chineses [1], pronunciou-se recentemente sobre a esperança que tinha de ver a China libertar-se o quanto antes do paradigma da produção baseada nos baixos salários e embarcar no próximo estágio de desenvolvimento [2].
Com os custos de produção a aumentarem rapidamente por força da escassez de trabalho persistente e das reivindicações das massas trabalhadoras por melhores retribuições [3], a fim de poderem acompanhar a evolução do custo de vida, as autoridades chinesas não parecem dispor de muitas alternativas. Há uns meses atrás verificaram-se mesmo importantes greves que indiciaram o novo perfil laboral no país – significativas deslocalizações, do litoral para o interior e mesmo para outras geografias como o Vietname [4] e o Bangladesh, começaram a tornar-se habituais.
Como já afirmei anteriormente: dir-se-á que “a China ensaia a mudança da estratégia económica, e o mundo aguarda impaciente” [5]. Pensar que tal mudança só diz respeito aos chineses é um erro enorme. Uma vez mais, a evolução chinesa vai modificar as nossas vidas. Quando? Diria que já.
Estes são dois exemplos das profundas alterações que estão em curso no tecido empresarial chinês:
Durante anos, a Philips e outras empresas ocidentais deslocalizaram para a China, região de Dongguan [6], parte significativa da produção de aspiradores domésticos e escovas de dentes eléctricas. A empresa chinesa que foi constituída para o efeito chama-se Kwonnie Applied Electrics, e cresceu imenso por força desta parceria [7]. Pois, como o jornal The Straits Times de Singapura relata em 17 de Setembro deste ano [8], a Kwonnie acaba de decidir iniciar a produção e comercialização das suas próprias linhas de electrodomésticos.
"Muitos clientes irão ficar insatisfeitos com a decisão de competirmos com eles", disse o Sr. Kwok, que é de Hong Kong e fundador da Kwonnie. "Mas não temos escolha." [9]
Há razões evidentes para decisões estratégicas semelhantes a esta que estão a ocorrer por todo o lado: (1) o aumento dos custos da mão-de-obra irão elevar os preços finais, e, portanto, a competitividade do modelo económico actual irá falir a curto prazo; (2) a China decidiu tornar-se, o quanto antes, um país inovador, abandonando a imagem de gigantesco produtor de “produtos ocidentais”, como espera o professor Gang atrás citado.
Outro exemplo é o grupo TAL [10], referido pela IBM como case-study. Justificação? “Um dos pioneiros na adaptação da indústria do vestuário para a gestão da cadeia de abastecimento (SCM) em todo o mundo”. [11]
A TAL teve de enfrentar, a partir de 2008, uma firme luta para se manter competitiva face ao aumento dos custos do trabalho, a revalorização do yuan, as greves laborais e os mais apertados controlos contra a poluição [12], despertando por isso a atenção do mundo dos negócios. O grupo tem sede em Hong Kong e é famoso pela produção de camisas (t-shirts). Calcula-se que 8 em cada 10 t-shirts vendidas nos USA sejam feitas pela TAL [13].
A partir do momento em que se começaram a verificar as primeiras retracções de investimentos em Dongguan, criaram-se dois enormes problemas: (1) as empresas querem sair da zona e encontram enormes dificuldades em encontrar no interior as competências de que necessitam; (2) as autoridades locais, que assumiram compromissos baseados em estimativa de receitas, receiam a partida dos contribuintes e a consequente quebra de receita nos impostos. Recorde-se que aqui estão presentes empresas tão globais como Sony, Burberry, ou HP. São hoje 15,000 e, entre elas, a TAL. Ninguém tem dúvidas que algo de fracturante irá aqui acontecer, e noutras áreas muito sensíveis às migrações - em Qingxi, por exemplo, os trabalhadores migrantes representam 90% dos 350,000 residentes.
Contudo, o problema mais grave parece ser que o capitalismo chinês começa a virar-se para outras geografias bem distantes, talvez onde não se tivesse ainda pensado – os recentes países da UE Central e de Leste, em particular a Polónia e a Ucrânia, como consta de várias revistas de negócios ocidentais [14]. Pela profundidade e complexidade do tema e pelas implicações político-militares desta opção deixarei este assunto para texto a ele especificamente dedicado.
Atente-se nas palavras de Zhu Guorong, Vice-Director do Instituto para a Cooperação Económica de Qingxi – “Todas as empresas querem agora ser companhias de alta tecnologia, e nós queremos encorajá-las nesse sentido” [15].
Alguma dúvida acerca do caminho que a China renovada já encetou?
Eu acho que é uma questão de tempo e dinheiro. Como dinheiro não falta na China, e o tempo é bem escasso nas outras bandas, nomeadamente na EU, está próximo o dia em que ouviremos com a maior das naturalidades – “Pode levar senhor cliente, é bom material, é “Made in China””.


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NOTAS:

[1] Fan Gang é Professor de Economia na Universidade de Pequim e na Academia Chinesa de Ciências Sociais, Director do Instituto Nacional Chinês para a Pesquisa Económica, Secretário-geral da Fundação para a Reforma da China, e membro do Comité para a Política Monetária do Banco Popular da China.
[2] http://www.project-syndicate.org/commentary/gang11/English
[3] http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/08/os-custos-de-producao-na-china.html
[4] http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/09/vietname-uma-nova-china.html
[5] http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/09/estrategia-economica-chinesa-ensaia.html
[6] Dongguan, fica no sul da China, província de Guangdong na costa leste do Rio Pérola, é das que mais cresce, de 1 milhão para 6.5 milhões de habitantes, desde que em 1979 o governo chinês iniciou as reformas económicas. Aqui operam 15,000 empresas internacionais. http://www.bobpearlman.org/Strategies/Dongguan.htm
[7] Só este complexo referido emprega mais de 3000 trabalhadores.
[8] http://admpreview.straitstimes.com:90/vgn-ext-templating/v/index.jsp?vgnextoid=533aaa9ad7b1b210VgnVCM100000430a0a0aRCRD&vgnextchannel=f511758920e39010VgnVCM1000000a35010aRCRD
[9] ver link indicado em [8]
[10] O grupo TAL (Textile Alliance Limited) foi fundado em 1962. Ver http://www.nytimes.com/2010/09/16/business/global/16factory.html?pagewanted=all
[11] http://www-07.ibm.com/hk/e-business/case_studies/manufacturing/tal.html
[12] http://www.talgroup.com/en/docs/20090204JustStyle.pdf
[13] http://www.just-style.com/analysis/tal-apparel-sews-up-asian-clothing-market_id92380.aspx
[14] http://www.metrolic.com/chinese-investments-targeted-at-central-and-eastern-europe-132361/
[15] http://www.nytimes.com/2010/09/16/business/global/16factory.html?pagewanted=2
Ver também como o TGV chinês, segundo notícia da Lusa de hoje, se prepara para assumir a liderança mundial no sector, em http://diariodigital.sapo.pt/dinheiro_digital/news.asp?section_id=20&id_news=145789

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

SOFT SKILLS, Factor Crítico em Negociação

Por: Vitor M. Trigo
vitor.trigo@gmail.com
20 Outubro de 2010

Praticamente toda a minha vida profissional teve a ver com Vendas. Umas vezes assegurando-lhes o suporte técnico de que necessitavam, outras assumindo directamente a responsabilidade pelos resultados. Em muitas situações, mais do que considerava como normais, encontrei vendedores que detestavam negociar. “Só tem necessidade de negociar, quem ou não é capaz de entender as necessidades dos clientes e que, por isso, não conseguem construir propostas irrecusáveis, ou os que não dispondo de soluções adequadas precisam de tornear as exigências dos clientes”, diziam-me. Ao princípio Fiquei admirado e pensei que estes profissionais eram, ou consideravam-se, perfeccionistas, mas a convivência acabava por revelar uma de duas coisas: ou tinham manifestas carências em técnicas de negociação, ou, pior, por se situar ao nível atitudinal, exibiam fortes deficiências relacionais.
As técnicas aprendem-se. A prática continuada encarrega-se de melhorar os comportamentos. As competências de relacionamento formam-se. Situam-se no domínio das emoções e dos sentimentos. Desenvolvem-se a nível atitudinal, e, por isso, não se ensinam nem se aprendem, moldam-se.

O que é negociar?

A Negociação é um processo de gestão de relacionamentos no qual as partes procuram chegar a um acordo que a ambos satisfaça. Este processo implica: (1) que as partes queiram encontrar uma solução, (2) que as partes estejam dispostas a ceder nalguns pontos para que a relação possa continuar.
Face a um Conflito [1] Negociar significa que, através dum processo estruturado, o vendedor e o comprador, praticando cedências mútuas, procuram um acordo benéfico para a transacção a efectuar. Ora, esta definição, arrisca-se a chocar com o que as partes entendem por Vender – um processo estruturado seguido pelo vendedor que o conduzirá ao acto de venda. Para tal o vendedor procurará identificar as necessidades e motivações do cliente, a fim de as satisfazer com benefício mútuo. Por outras palavras: na Venda, o vendedor tenta persuadir o comprador; na Negociação, o processo de persuasão é mútuo.
Os meus vendedores tinham razão, e eu, no início, não os estava a entender. Existem diferenças entre Vender e Negociar, e não são de pormenor como se possa pensar.

Fundamentos da Negociação [2]

Foi Roger Fisher [3] quem introduziu o conceito de “Negociação Baseada em Princípios”. Este método sistematiza a busca do acordo final nos processos negociais através de cedências mútuas e da procura de benefícios para as partes. De forma sintética, Fisher ensinou o seguinte:
• Devemos ser duros (Hard) com os problemas, e suaves (Soft) com as pessoas;
• Focar-nos nos interesses, não nas posições;
• Ser flexíveis na apresentação de alternativas;
• Utilizar padrões legítimos na busca do acordo;
• Conhecer o nosso BATNA [4] e procurar entender o do nosso interlocutor.
Como se vê existe aqui uma fortíssima componente Soft e é essa a razão deste artigo.

As pessoas acima de tudo

Os melhores negociadores são óptimos ouvintes – escutam tudo o que podem, falam só o que devem [5]. O que dizem podem escrever, e têm autoridade para garantir o cumprimento. Respeitam a relação, adubam-na, fazem-na perdurar. Os seus compromissos são sensatos, agradam aos interesses de ambas as partes, e baseiam-se em critérios justos e condições legítimas.
Um acordo que desrespeite a outra parte, ignore os seus interesses, a humilhe ou derrote, será sempre um mau acordo e a possível morte de relações futuras. Conhecedores destas limitações, os bons negociadores preparam as reuniões e estudam as características e interesses pessoais dos seus interlocutores, em especial no que diz respeito a comportamentos passados da outra parte, experiência e afiliação profissional, posição e afiliação organizacional, e autoridade realmente detida.

Interesses sim, posições não

Se existe conflito é porque as posições das partes não coincidem, podendo mesmo ser antagónicas.
Quando se procura um acordo, e é isso que justifica a negociação, devem explorar-se pontos de convergência e suavizar as divergências. Mas minimizar opiniões não convergentes, não significa ignorá-las, muito menos hostilizá-las. O segredo está em saber identificar interesses. Interesses são motivos de preocupação; posições são o que as pessoas reclamam. Ambos são cruciais numa negociação – é preciso procurar os verdadeiros interesses por detrás das posições demonstradas, que até podem não corresponder à realidade. Interesses são, pois, os objectivos subjacentes às propostas apresentadas.
Por isso, para conduzir uma negociação com êxito é essencial identificar o que motiva a outra parte. Dito de outra forma – posições diferentes podem não significar interesses divergentes.

Introdução de novas alternativas

Construir opções em função dos interesses de cada parte contribui para o alcance de acordo aceitável. Novas opções são, entenda-se, alternativas sem compromisso que só passarão a sê-lo depois de ratificadas pelos intervenientes. Deve-se portanto ser flexível na sua colocação em jogo, pois podem carecer de alterações para poderem ser aceites.
Estamos, agora, em plena fase criativa, e podemos explorar os ensinamentos de Edward de Bono [6] e as suas ideias sobre Pensamento Lateral [7]. Bono diz-nos que a melhor maneira de encontrar soluções inovadoras não é aprofundar o tradicional Pensamento Vertical, analítico, racional, cartesiano, mas antes complementá-lo com novos horizontes. Um exemplo característico que Bono apresenta habitualmente nos seus workshops é o seguinte: Bono desafia a assembleia, organizada naturalmente por mesas de trabalho de cerca de 8 pessoas, a encontrar a melhor forma de evitar que o indivíduo X se desloque do ponto A, onde está, para um determinado ponto B mais vantajoso. Após 2 minutos, Bono não solicita soluções, mostra a sua: Cria um ponto C que seja ainda mais vantajoso para X do que B. Este exercício normalmente resulta bem (a não nos casos, como eu, que já assistiram a vários seminários deste pensador). A assistência fica surpreendida, ouvindo-se mesmo o silencia da sala, mas não mais se esquece da experiência.

A legitimidade

Legitimidade é a base do roteiro para termos e condições justos.
O respeito pelo outro ajuda à noção de legitimidade. Por exemplo, quando queremos dizer a uma criança que não gostamos da forma com ela faz uma coisa qualquer, a mensagem será muito melhor aceite se completarmos a comunicação explicando-lhe como a deve fazer. Isto quer dizer que ninguém gosta que lhe lancem problemas, mas apreciará se lhe acenarmos com uma hipótese de solução.
Outro complemento importante respeita aos padrões de justiça. Corre-se o risco de ser injusto, tratando todas as pessoas da mesma maneira. É preciso entender os padrões de justiça do outro e enquadrá-los no nosso próprio conceito. Há, contudo, que acautelar os níveis de poder delegados em cada um dos intervenientes para que não se caia em situações virtuais, altamente lesivas da credibilidade dos intervenientes.

Os limites individuais – BATNA

Um dos erros mais comuns num processo negocial acontece quando alguém adianta uma alternativa sem ter em consideração as implicações – os limites delegados para a negociação podem vir a ser ultrapassados, e este facto só vir a ocorrer mais tarde quando já seja difícil, ou impossível, voltar atrás. Solução? Conhecer o seu BATNA e identificar o da outra parte.
As propostas alternativas devem ser claras. Não adianta tentar negociar escondendo interesses, a fim de iludir o outro. Por exemplo, quando um dos interlocutores avança com uma alternativa mal esclarecida (ou seja, ocultando detalhes à espera que o outro não dê por isso), as consequências serão, pelo menos a prazo, muito negativas.

Inteligência precisa-se

A inteligência que se exige no domínio que estamos a endereçar, não é a tradicional inteligência racional, vulgo QI elevado ou outra métrica equivalente. O que se espera do bom negociador é um elevado índice de inteligência emocional, como Daniel Goleman a define. O individuo emocionalmente inteligente, e no que aqui nos preocupa, o negociador eficaz é o que for altamente competente nas seguintes vertentes:
• Auto-percepção: Capacidade para conhecer as emoções próprias e não ter receio de falar sobre elas;
• Auto-regulação: Capacidade para controlar os impulsos próprios e de os canalizar para propósitos positivos;
• Motivação: Paixão pelo cumprimento de objectivos;
• Empatia: Capacidade de relacionamento com os outros, considerando os seus sentimentos na altura da tomada de decisões;
• Competências Sociais: Capacidade para construir relações com os outros, trazendo-os para ambientes cooperativos e orientando-os na direcção desejada.

Papel do poder numa negociação

A noção de Poder é algo de muito curioso, em ambiente negocial. O Poder depende de muitas variáveis, e está sujeito a múltiplas interpretações conjunturais. Além disso é efémero, mesmo nas instâncias onde menos se poderia admitir volatilidade – o campo da gestão é sintomático, basta uma crise bolsista e aí está a queda dos intocáveis.
É o poder na altura que determina os comportamentos dos intervenientes na negociação: Ora persuasivo, ora fugitivo, passando eventualmente por estados conciliatórios, de não comprometimento, assertivos, ou simplesmente simpáticos. Superlativo a estas mutações relevam a personalidade, as crenças, os hábitos, a cultura grupal e a capacidade de adaptação a cada negociação.
Longe de pretender esgotar o abrangente tema do Poder, fica uma mensagem final: O poder só interessa a quem estiver disposto a utilizá-lo.

Esclarecimento

Este artigo vai ser publicado na fase mais quente da negociação do OE 2011. Mera coincidência. Nada do que aqui disse foi influenciado por este evento, e muito menos pretendi comentar, ainda que de forma indirecta, a maneira como esta negociação está a decorrer.

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NOTAS:

[1] Conflito configura uma situação que envolve duas ou mais partes, em que cada uma delas procura influenciar decisões que a todos afectam. Conflito não implica negatividade, muito menos destruição. Como tal deve ser encarado de forma positiva e como uma excelente oportunidade a explorar na resolução de problemas e na tomada de decisões, rentabilizando as vantagens das diferenças de opinião.
[2] Negociação, no restrito contexto deste artigo não é: nem Mediação, em que uma terceira parte assegura o cumprimento das regras estabelecidas, nem Arbitragem, onde uma terceira entidade procura obter o acordo dos participantes.
[3] Roger Fisher é Emeritus Professor na Harvard Law School e Director do Harvard Negotiation Project. Nasceu em 1928 e é o co-autor, com William Ury, do clássico Getting to YES: Negotiating Agreement Without Giving In, Penguin Books 1983.
[4] BATNA = Best Alternative To Negotiated Agreement, ou Melhor Opção Para um Acordo Negociado (MOPAN).
[5] Tal significa que os bons negociadores são bons comunicadores. Dominar a comunicação, um inequívoco Soft Skill, é crítico em ambiente negocial.
[6] Edward de Bono nasceu em Malta, e licenciou-se em Psicologia e Medicina em Oxford. Introduziu o conceito de Pensamento Lateral, propondo métodos pouco ortodoxos na resolução de problemas.
Bono é Professor em Oxford, Cambridge e Harvard, e é autor de Six Thinking Hats (seis chapéus pensantes), em que cada cor corresponde a uma atitude mental: branca (informação); vermelha (intuição); preta (precaução); amarela (benefícios); verde (criatividade); e azul (pensamento organizacional). Ver também http://www.edwarddebono.com/Default.php
[7] Bono, Edward de (2005): O Pensamento Lateral – Um Manual de Criatividade, Editora Pergaminho Lda., Cascais, Portugal.
Bono, Edward de (2005): Os Seis Chapéus do Pensamento, Editora Pergaminho Lda., Cascais, Portugal.
Ver também http://criatividadeaplicada.com/2007/04/09/pensamento-lateral-como-se-libertar-dos-bloqueios-mentais/

sábado, 16 de outubro de 2010

E quando se acabar o petróleo, comemos o quê?

Por: Vítor M. Trigo
vítor.trigo@gmail.com
16 Outubro de 2010

Na sequência da primeira crise do petróleo produziram-se muitos estudos que parece não terem interessado o mundo, em particular os políticos. Recordo por exemplo “Eating Oil” [1], que tão profusamente foi utilizado pela Academia um pouco por todo o lado [2]. Lamentavelmente nada aprendemos com a lição.
Na trilogia “Alterações Ambientais”, que acabei de publicar neste blog, procurei reflectir sobre o “pico do petróleo” e a produção de energia em geral. Visitei duas conhecidas teorias, a Olduvai e a Beyond, e uma obra de ficção “Uma Verdade Inconveniente” que confrontei com “A Ficção Científica de Al Gore”. Em todas encontrei uma certeza – a produção de petróleo começou a declinar e extinguir-se-á dentro de 25 a 30 anos.
Hoje vou debruçar-me sobre a alimentação, ou melhor, sobre os bens alimentares.

A produção

O sistema alimentar nunca esteve tão dependente do petróleo. Chegámos a um ponto completamente irracional e insustentável. Vamos ter de mudar sob pena de resultados catastróficos. Vejamos, para que não subsistam dúvidas sobre a gravidade da situação actual:
• A gasolina e o diesel são indispensáveis para os tractores e outros veículos agrícolas, tanto na plantação como na pulverização, colheita, e transporte;
• As fábricas de alimentos dependem do fornecimento just-in-time de produtos frescos e congelados, e da produção e distribuição de aditivos (vitaminas, minerais, emulsionantes, conservantes, corantes), muitos deles derivados do petróleo, mas todos carentes do petróleo para a sua entrega;
• As embalagens que usamos para disponibilizar os produtos alimentares – caixas, latas, potes - são essencialmente produzidos à base de petróleo, bem como etiquetas, bandejas, tampas, etc.;
• Até nós, para adquirirmos os bens alimentares aos retalhistas, precisamos de petróleo para lá chegarmos.

A distribuição

Mesmo a mais elementar análise ao custo-benefício que envolve colocação de bens alimentares no consumidor e a energia consumida para o efeito, se revela completamente ineficaz.
Atente-se por exemplo num estudo feito no Reino Unido [3], que mostrou que as importações de alimentos e alimentação para animais ascenderam a 83 milhões de toneladas-quilómetro (t-km). Para tal foram necessários 1.6 biliões de litros de combustível, o que significa, numa estimativa conservadora de 50 gramas de CO2 por t-km, qualquer coisa como 4.1 milhões de toneladas de CO2 emitidas [4] [5]. Releve-se que se detecta, de 1978 a 1999, um aumento de 16% nas quantidades transportadas e de 50% nas distâncias percorridas, o que indicia que a globalização tornou o mundo mais plano.
Estes valores tornam-se ainda mais absurdos ao saber-se que em 1997 o Reino Unido exportou 270 milhões de litros de leite líquido e importou 126 milhões. Ou no que se refere a leite em pó exportou 153 mil toneladas e importou 23 mil [7]. Mais ainda, nos últimos 20 anos o Reino Unido duplicou as importações de leite e nos últimos 30 quadruplicou as exportações [8].
E para que não se pense que o negócio do leite é caso único, acrescente-se o que se passou com as aves (importações de 61,400 t dos Países Baixos e exportações de 33,100 t para a Holanda), com os suínos (importações de 240,000 t e exportações de 195,000 t), e com os cordeiros (importações de 125,000 t e exportações de 102,000 t) [9]. Qualquer leigo concluirá sem dificuldade que esta situação é insustentável, ilógica, e bizarra. Só uma fonte energética muito barata a poderia suportar, isto mesmo sem pensar nas emissões de CO2.

O (absurdo) desperdício de energia

Ainda com referência no Reino Unido, um estudo de 2001 [10] verificou que transportar 5 kgs de batatas sicilianas para o Reino Unido (2,448 milhas) significava emitir 771 gramas de CO2. Batatas sicilianas transportadas de avião para o Reino Unido?
Absurdo? Mas verdadeiro, e longe de ser caso único.
Por exemplo, cada caloria de alface importada dos USA para o Reino Unido representa um gasto de 127 calorias no combustível do avião usado no transporte. Como cada caloria de espargos importados do Chile consome 97 calorias de combustível, ou ainda, cada caloria de cenoura importada da África do Sul consome 66 calorias na viagem.
Para que não se pense que estas aberrações estão sempre ligadas ao Reino Unido, que aliás sempre nos habituámos a ver como “desalinhado”, cite-se o que se passa com o negócio de ketchup na Suécia. Uma verdadeira loucura. O que a seguir se relata, resulta dum estudo efectuado pelo Instituto Sueco para a Alimentação e Biotecnologia em 1996 [11]. No seu trabalho, os autores tomaram em consideração os insumos para a agricultura, o cultivo de tomate e a conversão em pasta em Itália, o processamento e empacotamento do colar e outros ingredientes do ketchup, e o armazenamento e retalho na Suécia – num total de mais de 52 etapas de processamento e transporte! Eis algumas revelações surpreendentes:
• Os sacos que os italianos utilizam para o acondicionamento asséptico da polpa de tomate foram produzidos nos Países baixos;
• As garrafas utilizadas no empacotamento, efectuado na Suécia, foram produzidas no Reino Unido, ou na Suécia, com materiais importados do Japão, Itália, Bélgica, USA e Dinamarca;
• As tampas das garrafas, em polietileno de baixa densidade, foram produzidas na Dinamarca;
• Não foram abordadas as questões relacionadas com rotulagem, colas, tintas, etc., obviamente importadas como os restantes componentes.
Este exemplo é demonstrativo da dependência alimentar em que nos encontramos, no que diz respeito a deslocações internacionais. Escusado será relembrar que, na maioria das situações, para os adquirirmos dependemos do combustível usado nos nossos carros para nos deslocarmos aos postos de venda.
Por mais optimistas ou despreocupados que sejamos, isto não é sustentável, nem sensato, e muito menos inteligente.

O (anunciado) fim do petróleo

Quase dois terços das reservas mundiais de petróleo encontram-se no Médio Oriente, em especial na Arábia Saudita, Irão e Iraque [12]. De 1980 a 1998 houve um aumento de 11,2% na produção de crude, de 59.6 para 66.9 milhões de barris diários, situando-se actualmente nos 25 biliões por ano [13]. A aritmética mais elementar leva-nos a concluir que, mantendo-se constantes os níveis de consumo, as reservas de petróleo conhecidas (cerca de 1 trilião de barris) esgotar-se-á por volta de 2040 [14]. Mas o mundo sabia o que se iria passar – as crises petrolíferas de 1970, 1980 e 1991 foram claras, não deixando margem para dúvidas [15].
Antes de se extinguir, o petróleo irá rarear, e aumentar de preço. O aviso solene, para os mais desatentos, foi feito ainda no século passado [16]. As arenas mais consumidoras de petróleo continuam, dir-se-á agora passados mais de 13 anos após a obra de Campbell, a alimentação, os transportes e o aquecimento. Dentro em breve, estas três áreas irão competir pela matéria-prima comum que utilizam.
Quem irá sofrer em primeira instância? Os países mais pobres. Quem haveria de ser, afinal?
Iremos passar por uma crise inevitável de alimentação? Sem rodeios apelidada de fome mundial generalizada?
É bem provável. Mas não é inevitável.

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NOTAS:

[1] Green, B. M. (1978): Eating Oil - Energy Use in Food Production, Westview Press, Boulder, CO.
Artigo também muito interessante e detalhado em: http://www.sustainweb.org/pdf/eatoil_sumary.PDF
[2] Por esta chave de busca (eating oil) encontram-se com facilidade, na rede, centenas de trabalhos académicos e jornalísticos bem esclarecedores.
[3] O Reino Unido é um caso bem peculiar, visto as importações e exportações de bens alimentares recorrerem a meios terrestres, marítimos e aéreos.
[4] Os dados para transportes aéreos e marítimos podem ser encontrados em Guidelines for company reporting on greenhouse gas emissions. Department of the Environment, Transport and the Regions: London, March 2001.
Os dados para camiões podem ser encontradas em
Whitelegg, J. (1993): Transport for a sustainable future, the case for Europe, Belhaven Press, London
e em
Gover, M. P. (1994): UK petrol and diesel demand, energy and emission effects of a switch to diesel. Report for the Department of Trade and Industry, HMSO, London
[5] Estima-se [6] que a emissão de CO2 imputável à produção, transformação e distribuição dos alimentos consumidos por uma família inglesa de 4 pessoas seja cerca de 8 toneladas por ano
[6] BRE (1998): Building a sustainable future, General information report 53, energy efficiency best practice programme, Building Research Establishment, Garston, UK
[7] Lobstein, T. and Hoskins, R. (1998): The Perfect Pinta, Food Facts No. 2, The SAFE Alliance
[8] FAO (2001): Food Balance Database. 2001, Food and Agriculture Organisation, Rome em www.fao.org
[9] Campbell, Colin J. (1997): The Coming Oil Crisis. Multi- Science Publishing Co. Ltd
[10] Com base em dados da UKROFS e de um inquérito efectuado em supermercadis de Junho a Agosto; nas tabelas de distâncias para milhas aéreas em www.indo.com/cgi-bin/dist; e ainda no impacto ambiental dos fretes aéreos em Guidelines for company reporting on greenhouse gas emissions. Department of the Environment, Transport and the Regions, London, March 2001
[11] Andersson, K. Ohlsson, P. and Olsson, P. (1996): Life Cycle Assessment of Tomato Ketchup, The Swedish Institute for Food and Biotechnology, Gothenburg.
[12] EIA (2001): World Oil Market and Oil Price Chronologies: 1970 – 2000. Department of Energy’s Office of the Strategic Petroleum Reserve, Analysis Division, Energy Information Administration, Department of the Environment, USA, também disponível em www.eia.doe.gov
[13] Green Party USA (2001): World crude oil reserves – Statistical information. Based on data from the Oil and Gas Journal and the Energy Information Agency. Também disponível em http://environment.about.com/library/weekly/aa092700.htm
[14] Medea, European Agency for International Information (2001): Oil Reserves. Também em http://www.medea.be/en/
Fleming, David (2001): The Great Oil Denial, Submission to the UK Energy Review, ou em
http://www.cabinetoffice.gov.uk/innovation/2001/energy/submissions/Fleming
Para um pouco mais de detalhe acerca da evolução na produção de petróleo: http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/10/alteracoes-ambientais-parte-1-de-3.html
http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/10/alteracoes-ambientais-parte-2-de-3.html
http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/10/alteracoes-ambientais-parte-3-de-3.html
[15] EIA (2001): op. cit.
[16] Campbell, Colin J. (1997): op. cit.

domingo, 10 de outubro de 2010

Alterações Ambientais (parte 3 de 3)

Petróleo, População, Novas Fontes de Energia
O Ficcionismo de “Uma Verdade Inconveniente”


Por: Vítor M. Trigo
vítor.trigo@gmail.com
10 Outubro de 2010

A terminar a trilogia “Alterações Ambientais”, e como prometido, chegou a hora de abordar o romance de ficção “Uma Verdade Inconveniente” (UVI) [1] que Al Gore [2] publicou com tanto êxito, que até lhe valeu o Nobel da Paz de 2007. Pode gostar-se ou não do estilo literário do autor, mas o conteúdo, esse é facilmente contestável sob o ponto de vista científico. Foi o que Marlo Lewis Jr, PhD [3] fez na sua obra “A Ficção Científica de Al Gore” [4], utilizada aqui como referência sistemática.
Marlo Lewis Jr. desmonta ponto por ponto as principais mensagens alarmistas de AL Gore, mostrando como elas não passam de interpretações especulativas de fenómenos que podem não ter a origem antropogénica que Gore lhes atribui, chegando mesmo a afirmar que algumas são falsas. Da capa de “A Ficção Científica de Al Gore” consta: “As alterações climáticas resultam de ciclos naturais em que o ser humano tem pouca ou nenhuma influência. As consequências catastróficas imputadas à acção do Homem pelos propagandistas do aquecimento global não têm fundamento científico” [5].
Ninguém ousará negar que a actual dependência energética nos países desenvolvidos é uma questão premente. Veja-se por exemplo, como a Europa tem de inverter a perigosa dependência em que se encontra: A Irlanda importa 90.9% da energia que consome, a Itália 86.9%, Portugal 83.1%, Espanha 81.4%, Alemanha 61.9%, França 51.4%, Reino Unido 21.8%. A Dinamarca produz mais 36.8% do que consome. [6] Até sob o ponto de vista de segurança esta situação é muito perigosa.
Lewis aborda e desmonta mais de uma centena dos mais emblemáticos cavalos de batalha de Gore. Aqui se citam algumas consideradas como as mais convenientes para abordar as lutas internacionais que se avizinham.

As cíclicas oscilações térmicas do planeta

Contrariando o alarmismo dos catastrofistas, Gore incluído, Lewis estuda o passado longínquo mostrando que as oscilações térmicas da Terra têm sido cíclicas e, acima de tudo, naturais.
Os “Períodos Quentes”, com temperaturas superiores às que hoje estamos a verificar ocorreram entre 8000AC e 3000AC (Óptimo Climático Holoceno), 200AC a 50DC (Período Quente Romano), e 800DC a 1300DC (Período Quente Medieval). Os “Períodos Frios”, deram-se entre 1350AC e 1250AC (Óptimo Climático Idade do Bronze), 100DC a 700DC (Período Frio Idade das Trevas), e 1350DC a 1850DC (LIA – Little Ice Age). Como se observa, as altas temperaturas alternaram com as baixas, de forma cíclica. [7]
Questiona-se, então: Porque ignora Gore tão importantes dados? Não acompanham as suas teorias que atribuem ao homem e à combustão fóssil todos os males?
Idêntico raciocínio se aplica quando Gore pretende demonstrar que as neves do Kilimanjaro estão a derreter de forma irreversível devido ao aquecimento global do planeta (sempre e só com origem nas emissões de CO2). Ora, Lewis apresenta registos que mostram que a dita liquefacção constante e acelerada a que Gore se refere, não corresponde à realidade: Em 1950 o Kilimanjaro perdera 45% das neves em relação a 1900. Nesse período verificou-se um aquecimento do ar na zona. Contudo, de 1953 a 1976, numa altura em que as temperaturas desceram, voltou a verificar-se uma diminuição de 21% no volume total das neves. De 1976 a 2000, de novo debaixo de um aquecimento do ar, as neves voltaram a recuar 12%.
É patente o recuo das neves do Kilimanjaro, mas não se pode afirmar que essa perda seja acelerada, como Gore afirma. Tão pouco se pode dizer que este fenómeno se deva a gradual aquecimento global, que não se tem verificado. Lewis defende que o recuo das neves coincide com a mudança de ar húmido para ar seco que se verificou em toda a zona, que as levou a retraírem-se e não a fundirem-se. [8]

Calamidades naturais

Muita especulação e inverdades se encontram nas citações de Gore sobre as calamidades naturais que assolam a Terra de forma cada vez mais persistente a avassaladora. Eis o que Lewis revela e Gore ignora [9]:
• Desde 1950 que os tornados que afectam os USA (Gore refere-se principalmente aos USA em UVI) estão a diminuir. Se as consequências têm sido mais graves, isso deve-se a factores socioeconómicos, em especial a concentração das populações junto às costas e a falta de respeito pelas mais elementares regras de prevenção e segurança;
• O número de mortes devido a calamidades naturais (tornados, secas, e inundações) diminuiu 95% em relação a 1920 [10];
• As maiores secas nos USA ocorreram na segunda metade do século e em 1930, não nos anos mais recentes [11].
Também não corresponde à realidade, e só o oportunismo e o alarmismo podem justificar, que Gore defenda que o nível das águas dos oceanos esteja a subir a níveis assustadores. Eis o que Lewis revela [12]:
• O nível das águas dos mares subiu cerca de 1 mm por ano no século XX;
• Não é o Tamisa que está a subir, é Londres que se está a afundar – 60 cm no século XX;
• É verdade que o glaciar WAIS está a perder massa, mas também é verdade que o EAIS está a ganhar massa. Gore refere o primeiro e omite o segundo. No cômputo geral a Antárctida reduziu 0.09 mm por ano [13];
• É verdade que a Gronelândia está a recuar, mas é preciso dizer que a perda de 101 gTon, verificada entre 2003 e 2005, corresponde a um recuo de 2.8 cm por século [14]. Note-se que a perda de massa (água doce muito fria) no Árctico resulta em alteração considerável na Circulação Termohalina afundando mais tarde as correntes superficiais quentes que provêem do Pacífico Norte dirigindo-se para o Atlântico Norte junto às costas continentais [15].

Assim sendo

Coloca-se outra vez a questão: o que leva Gore a omitir informações tão importantes e a utilizar argumentos sem sustentação científica?
O objectivo da trilogia de artigos “Alterações Ambientais” não era travar a discussão sobre o possível aumento de temperatura do planeta. Nem debater sobre o efeito de estufa pela emissão de CO2. Estes artigos não visavam discussões técnicas. Tão pouco colocar Al Gore e os alarmistas do perigo ambiental em cheque.
Estes artigos foram escritos como contribuição para o melhor entendimento das guerras que se irão travar pelo acesso ao petróleo e outras fontes de energia, que irão fatalmente escassear à medida que as reservas forem diminuindo, e os países subdesenvolvidos forem tendo cada vez maiores necessidades energéticas. Em particular há que estar atento à forma como os países emergentes irão desenvolver as suas economias, a fim de alcançarem o bem-estar dos países desenvolvidos. No fundo, como ratear o que começa a escassear.

Nota final

A Caleidoscópio editou em 2008 outro interessante e sério trabalho intitulado “A mentira do Aquecimento Global – Mito ou Ciência?”, da autoria de Roy Spencer. Como síntese: “A terra não é um planeta frágil mas resiliente”. O autor defende que o sistema climático da Terra não é tão sensível às emissões de gás e ao efeito de estufa como muitos cientistas pensam. Vale a pena lê-lo.
Se o entusiasmo continuar, não percam também “O Mundo é Plano – Uma História Breve do Século XXI” (2007) e “Quente, Plano e Cheio” (2008), ambos de Thomas L. Friedman, editados pela Actual Editora. Numa perspectiva diferente, são obras igualmente fascinantes.

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NOTAS:

[1] Publicado em Portugal (2007) pela Gradiva, numa versão de 192 páginas para jovens, apoiada pela CGD. Uma versão integral data de 2006, tem 328 páginas e foi editada pela Manole, Brasil. Aqui para download: http://yesfilmes.org/2008/10/download-uma-verdade-inconveniente.html (cuidado: solicita o número do seu TM)
[2] Al Gore, jornalista de profissão, foi Vice-Presidente de Bill Clinton. Perdeu a campanha de 2000 para George W. Bush. O seu primeiro livro foi “A Terra em Balanço” (1993). Tornou-se um mediático ecologista.
[3] Marlo Lewis Jr é PhD em Governo (Harvard) e BA em Ciências Políticas (Claremont McKenna). Desempenha funções de Senior Fellow no Competitive Enterprise Institute
[4] Almedina (2008), 1ª edição, Bnomics
[5] Comenta Lewis que: “Al Gore tornou-se o representante de uma corrente alarmista que tenta condicionar as consciências dos cidadãos, jornalistas e políticos”
[6] El Pais, cit in Sábado n. 239, Nov 2008, p. 18
[7] Marlo Lewis Jr. (2008): A Ficção Científica de Al Gore, Cap. 2 – Os Glaciares de Montanha, Booknomics, p.p. 29-40
[8] op. cit., p.p. 29 - 31
[9] op. cit., p.p. 57 – 67
[10] op. cit., p. 211, Fig. 40, citando Goklany. Ver também op. cit., p. 204, Fig.29 (fonte: World Climate Report (2003), e Figs. 32 a 39, op. cit., pags206 a 210
[11] op.cit., p. 78
[12] op. cit., p.p. 117 - 134
[13] Lewis apresenta registos gráficos destes dados nas Figs. 68 e 69 p. 226 (op. cit.), citando como fontes, respectivamente, Velicogna e Wahr (2006) e Davis et al. (2005)
[14] A Gronelândia nos anos 1920 e 1940 era tão ou mais quente do que na década passada (Lewis 2008, p. 216, Fig 49), citando Chylek et al (2006)
[15] A corrente profunda fria da Circulação Termohalina parte do Atlântico Norte para o Pacífico Norte passando junto da Antárctida. Qualquer alteração neste circuito produzirá efeitos na flora e fauna dos oceanos e na Corrente Quente do Golfo que é ao grande estabilizar do clima no Hemisfério Norte. Ver esquema da Circulação Termohalina em Lewis (op.cit.) Fig. 53, p.218.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Alterações Ambientais (parte 2 de 3)

Petróleo, População, Novas Fontes de Energia
A Teoria “Beyond”


Por: Vítor M. Trigo
vítor.trigo@gmail.com
07 Outubro de 2010

No artigo anterior Alterações Ambientais (parte 1 de 3) apresentei a colecção dos três textos previstos e abordei a Teoria Olduvai, ou do Declínio Terminal Eminente, cujo autor Richard C. Duncan, engenheiro e MS em energia eléctrica e PhD em engenharia de sistemas, defende. Como referi, de acordo com este autor o futuro próximo será catastrófico, se a humanidade não inverter os hábitos e a dependência energética concentrada no petróleo, carvão, e electricidade tradicional.
A perspectiva Beyond, da autoria dos PhD Mario Raich PhD e Simon Dolan também não é animadora. Debruça-se, no essencial, no crescimento incontrolado da população e nos efeitos sobre a humanidade e o planeta.

“Beyond”, ou Para Além da Zona de Conforto

Tive o prazer de assistir a uma conferência dos PhD Mario Raich e Simon Dolan em Lisboa [1]. Não conhecia estes autores que me surpreenderam pela coerência e pela objectividade. De facto, as suas intervenções não são muito optimistas no que respeita ao futuro que nos espera se persistirmos nos mesmos erros. As suas preocupações focalizam-se no crescimento incontrolado da sociedade humana e na incapacidade da Terra suportar esta pressão dentro dos actuais padrões de vida.
Em resumo, quais são as principais preocupações destes autores?
• Temos um estilo de vida insustentável
• Crescemos a 80 milhões pessoas / ano (uma nova Alemanha todos os anos)
• 90 % dos 1.5 mil milhões de jovens vivem em países em vias de desenvolvimento
• Iremos ter 50 milhões de desalojados nas próximas décadas, só por causa de inundações
• Enfrentaremos novas guerras e terrorismo
• Já ultrapassámos o “Pico do Petróleo” (Duncan afirma o mesmo, como relatado no artigo anterior)
• Precisamos de 15 mil milhões de euros para infra-estruturas (verba irrisória se comparada com o valor calculado por estes autores para reforçar a rede eléctrica mundial usando a tecnologia actual – 60 triliões de US$ até 2030 [2] )
• Vivemos um urbanismo insuportável (mil milhões de pessoas vivem em bairros degradados)
• A nossa vida é uma “Realidade virtual”

O quadro não é animador, e o discurso de Mario Raich segue a mesma linha - não é confortável ouvi-lo, o que não é de espantar pois o próprio considera a sua mensagem como “para além da zona de conforto”. Eis o que M Raich identifica com as grandes origens dos problemas actuais:
Demografia ► Deterioração Ambiental ► Migração ► Conflitos ► Pobreza
Note-se que alguns destes passos podem ser ultrapassados, alcançando-se o fim da linha de forma mais rápida e contundente. O resultado final é sempre o mesmo – insustentabilidade.
Detalhando um pouco, os autores observam que de acordo com os relatórios da UN [3]:
• Em 2005 existiam 200 milhões de migrantes;
• 1/3 destes eram migrantes sul-sul, o que é surpreendente;
• As UN calculam que dentro de 45 anos possam existir 2.2 milhões de migrantes dos países subdesenvolvidos para os países desenvolvidos;
• Destes cerca de 1.1 milhões poderão tentar migrar para os USA.
É claro que poderá argumentar-se que se não for assim, os países desenvolvidos terão de abandonar o actual conceito de estado social e outros institutos que se baseiam na colecta de impostos directos sobre o trabalho. E também não se podem negligenciar as remessas que esses migrantes canalizarão para os seus países de origem. No seu conjunto, em 2004, os países subdesenvolvidos captaram 130b US$ em investimentos externos e receberam 160b US$ em receitas dos seus emigrantes [4].
Como consequências mais gravosas destes fenómenos, salientam-se [5]:
• Procura crescente de proteínas, o que implica excesso de gado em pastagens escassas e consequente destruição de áreas florestais, para além de acréscimo significativo nas emissões de CO2;
• Produtividade e mobilidade acrescidas, com inerentes aumentos da temperatura ambiente;
• Degradação do cultivo das terras, pela procura acrescida de trabalhos urbanos, e consequentes migrações internas e externas;
• Aumento e concentração das populações, que contribuirão para a escassez de recursos:
• Maior esperança de vida, o que implicará populações cada vez mais envelhecidas e novos problemas no financiamento dos Estados.
Face a tão dura realidade e rejeitando qualquer hipótese das sociedades prosseguirem insistindo exclusivamente em valores materiais, Beyond propõe-nos um mundo novo centrado nas pessoas numa perspectiva holística.
A primeira camada de valores a colocar em torno das pessoas, funcionaria como filtros com a envolvente, a saber: Valores Emocionais, Valores Espirituais, Valores Éticos, e Valores Económicos. Seria este conjunto estruturante, que, através das suas ligações todos-a-todos, asseguraria o equilíbrio dos vectores dominantes no mundo novo: a Família e os Amigos, a Educação e o Desenvolvimento, a Filantropia e a Caridade, a Cultura e a Arte, o Trabalho e o Negócio, a Sociedade e a Política. [6]
Pode parecer um modelo demasiadamente vago, utópico até. Mas uma proposta de clivagem com as sociedades actuais, tem de ser suficientemente genérico para ser abrangente e reunir valores que não sejam rejeitados de imediato.
Gosto da mensagem, e penso que vale a pena encará-la com seriedade. Por isso a trago aqui com este detalhe. Julgo que ela poderá ajudar a:
• Purificar o ar, melhorar a qualidade das águas, e assegurar alimentação para todos sem aumentar a degradação do ambiente;
• Proteger os ecossistemas;
• Reduzir as emissões de CO2;
• Limitar a corrida às armas de destruição massiva;
• Explorar correctamente as nano e biotecnologias, e outras tecnologias emergentes;
• Limitar as guerras por recursos básicos, como a água potável;
• Conviver com o mundo virtual;
• Controlar as migrações em massa;
• Construir um mundo verde.
Releve-se que, partindo de enfoques distintos, as Teorias Olduvai e Beyond apresentam de comum: (1) leituras preocupantes da realidade actual; (2) perspectivas sombrias do futuro próximo; (3) urgência na tomada de decisões fracturantes sobre o nosso modo de vida colectiva; (4) recusa no aproveitamento simplista de fenómenos da natureza imputáveis a factores antropogénicos.
Considero particularmente interessante o estudo conjunto destas duas Teorias – Olduvai e Beyond.

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NOTAS:

[1] Mario Raich é um distinto pensador do futuro. Da sua actividade profissional destacam-se Visiting Professor (HEC, Paris), Visiting Professor (ESADE Graduate School of Business, Barcelona), GSM da Educatis University (Altdorf), Associate Professor e Founding Director do Institute for Strategic Innovation.
Simon Dolan, por muitos considerado utópico, insiste em que a sua preocupação se chama sustentabilidade. S Dolan é Doctor of Philosophy (Organizational ychology/Behaviour & Administration (University of Minnesota), Master of Arts (IR/Human Resource Management (University of Minnesota), M.A. Human Resource Management (Tel Aviv University), M. Sc. in Organizational Behavior (Tel Aviv University), e B.A. Labour Studies (Tel Aviv University).
Em conjunto editaram Beyond – Negócios e Sociedades em Transformação, 2008, Lisboa, Bnomics – Almedina, uma obra que dá gosto estudar e apreciar.
[2] Como referência, o PMB (Produto Mundial Bruto) em 2006 foi 67 triliões de US$ - Raich, M e Dolan S (2008): Beyond, pp. 99-114, pp. 120-125, Bnomics, Almedina
[3] op. cit. , p62
[4] op. cit. , p62
[5] op. cit. , p62
[6] op. cit. , p128

Alterações Ambientais (parte 1 de 3)

Petróleo, População, Novas Fontes de Energia
A Teoria Olduvai


Por: Vítor M. Trigo
vítor.trigo@gmail.com
05 Outubro de 2010

Enquadrando o tema

A ninguém passam despercebidas as alterações ambientais que estão a afectar o planeta. Deixamo-nos levar pelas notícias que inundam os média sem nos debruçarmos com um pouco mais de profundidade sobre o tema. Os jornalistas estão a fazer o que a sua profissão exige – que vendam – e todos sabemos que são as caixas rápidas, sintéticas, e dramáticas as que recolhem mais dividendos. Por isso, esses profissionais especulam com tanta persistência, ultrapassando questões éticas e deontológicas que dizem pautar as suas actuações. Mas não são só eles. O negócio é rentável e atrai famosos do chamado jet-set que, a mais das vezes, nada têm a ver com o assunto. É o caso de Al Gore, o mediático perdedor da política (alusão que utiliza para quebrar o gelo das suas palestras), que delicia multidões de desinformados que adoram assistir às suas palestras e ler os seus romances de ficção.
Negócio é negócio, e as oportunidades são para aproveitar. Decência e pudor não rendem fortunas.
Esta colecção de três artigos, intitulada genericamente Alterações Climatéricas, tentará mostrar que muito do que se diz e escreve sobre o tema não beneficia de suporte histórico nem científico – por vezes não passam de mera especulação, supostamente suportada em factos citados como reais, mas que não passam de descrições parcelares da verdade.
Nas duas primeiras partes abordam-se duas teses empiricamente justificadas - a Teoria Olduvai e a Teoria Beyond. Na terceira parte tentar-se-á divulgar um interessante estudo que visa desmontar a pretensa validade das teses catastrofistas e oportunistas duma série de ficcionistas, cuja face mais mediática é Al Gore, o ex-candidato à Presidência dos USA, “título” com que se apresenta ao seu dedicado, e normalmente desinformado, público.
No fundo, estes três artigos procuram, ainda que de forma simplificada, recolher as propostas que os autores seleccionados adiantam para as seguintes questões relacionadas com as alterações climatéricas, e em particular o designado aquecimento global: (1) Estaremos perante uma catástrofe natural incontrolável? A enfrentar um período de aquecimento global cíclico suportável? Ou face a uma estratégia de desenvolvimento errada, mas que ainda é reversível?
Avancemos, então.

A Teoria Olduvai

Também conhecida por Teoria do Declínio Terminal Eminente foi desenvolvida por Richard C. Duncan, MS em Energia Eléctrica e PhD em Engenharia de Sistemas [1]. Este autor debruça-se essencialmente sobre a questão do crescimento descontrolado da humanidade, reflectindo sobre cenários alternativos para o crescimento da população e sua sustentabilidade.
Baseado em dados dum estudo efectuado em 2004 pelas UN [2]:
• Numa previsão em baixa, a população mundial, que actualmente ronda os 6.7 biliões de pessoas, crescerá até cerca de 8b por volta de 2025, iniciando uma inversão de crescimento a partir de 2050, podendo vir a ser em 2100 cerca de 5.5b, baixando em 2150 para cerca de 4.5b, para atingir em 2300 entre 2.5b a 3b;
• Duas outras perspectivas, designadas como média e crescimento nulo, apontam para aumento progressivo até 10b por volta de 2100, mantendo-se então constante até 2300;
• Finalmente, na visão em alta, considerada como pessimista, prevê-se um aumento sistemático para 10b em 2050, 14b em 2100, 17b em 2150, 21b em 2200, 27b em 2250, e 36b em 2300.
Recorrendo a estudos de curto prazo, este autor analisa [3] o que poderá acontecer até 2050, estudando dados registados desde 1950 (em 1950 a população mundial rondava 1.8b, em 1975 cerca de 4b, e em 2000 era 6b):
• O estudo Meadows [4] aponta para crescimento até 6.9b por volta de 2020, atingindo um pico de 7.5b em 2025, iniciando uma queda para 6.5b em 2050;
• O estudo do USA Census Bureau [5] prevê idêntica evolução ao anterior até 2020. Este pico de 6.9b será o ponto de inflexão, a partir do qual se conhecerá um retrocesso para pouco mais de 5b em 2025, e uma queda tremenda para menos de 2b em 2050.
Face a estas informações, Richard C. Duncan prevê que por volta de 2012 se comecem a verificar blackouts energéticos permanentes um pouco por todo o mundo, que farão cair, por volta de 2030, os consumos efectivos de energia para valores semelhantes aos de 1930. Uma catástrofe de incalculáveis consequências, se nada for feito para evitar esta tendência [6]. Recorde-se que em 1930 o consumo de energia (medido em boe = barril of oil equivalent) per capita per year era 3.32, tendo atingido o pico em 1979 com 11.15 boe/c/year. [7] Tal significaria, por outras palavras e em consumos de energia como a conhecemos um retrocesso de cem anos!
A partir de 1992, Duncan alargou os estudos a outras fontes energéticas, nomeadamente ao petróleo, prevendo que a partir de 2007 este entraria em declínio acelerado até à extinção (a nota [8] é fundamental para se perceber o raciocínio de Duncan), precipitando a humanidade numa catástrofe malthusiana que conduziria ao desaparecimento da maioria da população ainda dentro do século XXI. Esta é a explicação para a previsão em baixa das UN atrás referida.
Como homem de ciência que é [9], Richard C. Duncan não se limita a dramatizar sobre o que receia poder vir a ser o futuro. Olha para a realidade e questiona porque não se envereda pelas soluções mais óbvias, aproveitando o petróleo enquanto existe, mas começando imediatamente a construir alternativas.
O quadro seguinte, mostra o potencial de uma das fontes de energia mais limpa que se conhece, e que não parece vir a esgotar-se em poucos anos.
Decomposição da energia emitida pelo Sol, em TeraWatts [10]:
• Emitida para a Terra – 178,000
• Imediatamente reflectida para o espaço – 53,000
• Absorvida e reflectida na forma de calor – 82,000
• Usada na evaporação de água (clima) – 40,000
• Capturada para fotossíntese (plantas) – 100
• Total usado pela Humanidade – 10
• Total usado pela sociedade USA – 2.5
A conclusão é tão óbvia que Duncan nem se preocupa em perder tempo a argumentar sobre ela. Apresenta-a. Tamanha evidência ainda não é suficiente para desalojar interesses instalados? O que é que falta, afinal?
Longe, muito longe mesmo, de descrever toda a riqueza da Teoria Olduvai, cujo aprofundamento se recomenda, este artigo visou revelar a visão de futuro nada risonho que o seu autor tem sobre o tipo de sociedade que desenvolvemos, aparentemente baseada na ideia de que os recursos do planeta são ilimitados.
Todos sabemos que isto não é verdade. Receamos, de facto, que o planeta um dia nos mostre os erros que estamos a cometer. Mas, no fundo, parece que mantemos uma velada esperança de que não tenhamos razão.

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NOTAS:

[1] Richard C. Duncan (2005) fundou o Institute on Energy and Man, 5307 Ravenna Place, NE, #1, Seattle, WA 98105. Pode encontrar muito completa informação sobre população, energia, petróleo, e a própria Teoria Olduvai em: http://www.dieoff.org./ e http://www.thesocialcontract.com/pdf/sixteen-two/xvi-2-93.pdf
[2] http://www.un.org/esa/population/publications/longrange2/2004worldpop2300 reportfinalc.pdf
[3] Duncan (2005): The Social Contract 2005 -2050. Em http://www.thesocialcontract.com/pdf/fifteen-three/xv-3-173.pdf, Duncan apresenta um estudo muito interessante sobre o pico na produção mundial de petróleo e suas implicações.
[4] Meadows et al (2004): Limits to Growth, The 30-year update. Interessante artigo sobre desenvolvimento e produção de petróleo aqui: http://www.independent.org/pdf/tir/tir_12_04_3_marxsen.pdf
[5] USCB (2004) 1950 – 2004
[6] Desenvolvimento em http://www.greatchange.org/ov-duncan,road_to_olduvai_gorge.html, elucidativa ilustração na Fig. 4 deste URL
[7] Para mais detalhada informação sobre
Energia: Romer (1985): Energy Facts and Figures, Amherst,MA: Spring Street Press BP (2006): BP statistics review of world energy, June 2006, www.bp.com
População: USCB (2006): Total Midyear Population, www.census.gov UN 2006): World Population to 2030, www.un.org
[8] Em 2006 o consumo global de energia repartiu-se da seguinte forma: Petróleo 35.43%, Carvão 28.15%, Gás Natural 23.46%, Electricidade Hídrica 6.27%, Electricidade Nuclear 5.79%, Eólica + Geotérmica + Biomassa + Solar 0.86%, Geotérmica + Biomassa + Solar não usada para electricidade 0.05%. http://edro.files.wordpress.com/2007/11/world-consumption-2006-abc.png http://edro.wordpress.com/energy/286w/
[9] Richard C. Duncan é engenheiro especializado em questões de energia. Alguns autores acham que ele não é um verdadeiro cientista, mas tão só um técnico qualificado. De facto, não consta que alguma vez ele se tenha dedicado à investigação em exclusividade. Duncan é Mestre em Energia Eléctrica e Doutor em Engenharia de Sistemas.
[10] www.hubertPeak.com/debate/oilcalcs.htm