segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

CHINA-USA: “O (Oceano Pacífico) que nos une”

Por: Vitor M. Trigo
vitor.trigo@gmail.com
14 Fevereiro de 2011


Agora, que pousou suficiente poeira sobre a visita de Hu Jintao aos USA, acho que chegou a altura de analisar o que foi dito, e o que tal poderá significar. Não quis fazê-lo em cima do acontecimento, mas agora já chega de reflexão e é hora de comentário.


Que mensagem transmitiu Hu Jintao aos americanos?


“Senhoras e senhores, há trinta e dois anos, Deng Xiaoping, o grande arquitecto da reforma e da abertura da China, fez uma visita histórica aos Estados Unidos. Aqui ele disse que o Oceano Pacífico deixou de ser um obstáculo que nos separa. Pelo contrário, é um vínculo que nos une. A história provou a justeza dessa afirmação”.

Foi assim, com todo este calor metafórico, que o presidente Hu Jintao se referiu às relações entre os dois gigantes da economia mundial, durante um almoço de cortesia oferecido por organizações americanas a 20 de Janeiro em Washington. O discurso total foi publicado pela agência Xinhua.

Após relembrar como os dois países partilham interesses estratégicos – destacando a questão nuclear coreana e o Afeganistão – o presidente chinês tratou de recordar aos seus ilustres anfitriões como os tem ajudado. Por certo que os USA não concordarão com a afirmação, mas Hu Jintao referiu que na última década a qualidade dos produtos chineses de baixo custo permitiu aos americanos pouparem cerca de 600 mil milhões de USD, e que 70% das empresas norte-americanas na China continuaram a ser rentáveis no difícil período de 2008-2009, isto sem esquecer que actualmente o fluxo turístico entre os dois países ultrapassa 3 milhões de viagens por ano.

Aproveitando os progressos já conseguidos, o presidente chinês lançou o que considera serem os cinco alicerces do crescimento conjunto (Hu Jintao afirmou mesmo que se estava a referir a cooperação estratégica e não um qualquer jogo de soma nula):

(1) Os dois lados devem ver e tratar as relações bilaterais sob perspectiva global;
(2) Tanto a China com os USA devem avançar na reestruturação económica, protecção do ambiente, energia e inovação tecnológica, saúde, educação e outros programas sociais, aviação e exploração espacial;
(3) Os nossos países devem melhorar a coordenação global, enfrentar as mudanças climáticas, promover a segurança energética e dos recursos, a qualidade alimentar e a saúde pública, mantendo diálogo e intercâmbio nas questões de segurança regional;
(4) Precisamos reforçar iniciativas que garantam que as gerações mais novas se empenhem em levar por diante a amizade China-USA;
(5) Devemos tratar-nos com mútuo respeito e em igualdade, endereçando de forma adequada as questões sensíveis.

Releve-se como o orador prepara o caminho para o ponto quinto. Os quatro pilares anteriores são tratados de forma suave, natural, em paz, em continuidade, e sem ameaças. Contudo, a surpresa estava reservada para o último ponto – o tratamento respeitoso e igualitário. Hu Jintao, foi claro – em relação ao Tibete e Taiwan, e a todas as questões de integridade nacional chinesa, ou os USA optam por respeitar a sensibilidade de 1,300 milhões de chineses, ou as nossas relações irão sofrer problemas constantes ou mesmo tensão.

Retomando o discurso amistoso e cooperativo, Hu regressou aos números, e aos argumentos que mais atraem este tipo de assistência. Em jeito de balanço da primeira do século XXI, o presidente chinês relembrou que a China:

- Cresceu à média anual de 11%;
- Importou 687 mil milhões de USD;
- Justificou a criação / manutenção de 14 milhões de empregos no estrangeiro;
- Desempenhou papel relevante na resolução de importantes crises internacionais, em particular na recuperação económica global e na reformulação do sistema financeiro internacional.

Após a aplicação da técnica da sanduíche, ou mais propriamente do hamburger já que estava em terras do Tio Sam, colocando a delicada questão da soberania nacional meio disfarçada no discurso que todos queriam ouvir, Hu Jintao terminou com uma vasta lista de promessas e directivas, que deve ter deixado os ilustres homens de negócios de “olhos em bico”.

Destaco:

- A China é o maior país em desenvolvimento;
- O desenvolvimento, em particular o científico, é a base para a resolução dos nossos problemas;
- Estamos decididos em colocar as pessoas em primeiro lugar, promovendo políticas holísticas de bem-estar, equidade e justiça social;
- Já definimos as linhas mestras para o desenvolvimento sustentável nos próximos cinco anos;
- Continuaremos a aprofundar a abertura ao exterior, as reformas, a reestruturação económica, política, cultural, e social;
- Vamos desenvolver a democracia socialista e construir um país socialista sob o primado da lei;
- Defendemos soluções pacíficas para os diferendos internacionais;
- Não nos envolveremos na corrida armamentista, nem seremos ameaça para nenhum país;
- A China nunca prosseguirá políticas expansionistas.

Quaisquer que sejam as suas opções ideológicas, o leitor poderá imaginar o impacte tremendo que tais afirmações produzem junto de magnates dos negócios. De facto, que poderiam eles esperar mais?


Mas, que consistência terá, afinal, este discurso?


Hu Jintao é um político arguto. Provou-o repetidas vezes ao longo do seu mandato. O que disse aos homens de negócios americanos não foi, de todo, surpresa, principalmente no que diz respeito aos grandes números que apresentou. Tais mensagens haviam sido publicadas no People’s Daily em 2009.

O mesmo se pode dizer das referências ideológicas e das linhas mestras da política chinesa. Recorde-se, por exemplo, que numa visita a Londres, também em 2009, o presidente Jintao não hesitou em citar Adam Smith e a sua Teoria dos Sentimentos Morais – “Se os frutos do desenvolvimento não forem compartilhados por todos, então o desenvolvimento será moralmente condenável e tornar-se-á numa ameaça à instabilidade”, como relata The Economist de 19 de Março de 2009. Sempre oportuno, Hu Jintao.

Mas, vejamos por partes se os números apresentados não são mera argumentação política.

1. Sobre a alegada poupança de 600 mil milhões de USD de que os norte-americanos terão beneficiado graças aos produtos de baixo custo importados da China

No artigo “The Effect of Trade with Low-Income Countries on U.S. Industry”, publicado em Junho de 2008, Raphael Auer do Swiss National Bank e Andreas M. Fischer do Swiss National Bank e CEPR, explicam porque consideram que os valores em causa não estão longe da realidade. Resumidamente, o artigo diz o seguinte:

- O estudo incidiu em 325 empresas transformadoras norte-americanas de comida para animais domésticos;
- Os autores estimam que, sempre que as importações chinesas aumentarem a sua quota de mercado em 1 ponto percentual, os preços ao produtor americano quebrarão cerca de 2,5%;
- De 2001 a 2006, a China alegou ter passado duma quota de mercado de 3.7% para 8.6%. Nesse período as importações norte-americanas provenientes da China cresceram cerca de 28%, enquanto as importações totais dos USA subiram apenas 4%. Face a estes dados, os autores, concluem que a China terá ampliado a sua quota de mercado de fabricação para 10.6%;
- Tal significaria que a penetração da China nos mercados norte-americanos teria aumentado 6.9 pontos percentuais entre 2001 e 2010, ou seja, 0.69 pontos anuais.
- Se cada ponto a mais tivesse reduzido os preços em 2.5%, a expansão chinesa teria sido responsável pelo corte de 1.7% ao ano;
- Ora, como as vendas totais de produtos manufacturados atingiu 4,512 mil milhões de USD por ano na última década, os cálculos anteriores sugerem que essas transferências poderiam ter custado 4,590 mil milhões, se a China não tivesse interferido;
- Donde se pode extrair a implicação de 78 mil milhões por ano, ou seja, 780 mil milhões de USD ao longo da década.

Cálculos complicados que o público não fará, por certo, mas que não estão muito distantes da análise global feita por Hu Jintao.


2. A China, desde a adesão à OMC, terá sido responsável pela criação de mais de 14 milhões de empregos em todo o mundo


Provavelmente, a assistência terá reagido com misto de incapacidade de verificação e sentimento de propaganda. No entanto, os números coligidos por fontes como o FMI (Fundo Monetário Internacional) ou o CEIC (Centro de Estudos e Investigação Científica) variam, conforme os anos, entre 14 e 17 milhões. Alguns até poderiam ter presente os relatórios do FMI que estimam que o comércio USA-China terá criado 600 mil postos de trabalho nos USA.
Contudo, é bem provável que sigam mais atentamente os artigos de Paul Krugman do que os relatórios do FMI.

E qual é a opinião de Krugman sobre o tema? Arrasadora! O prémio Nobel economista, que se define no seu blog – “The Conscience of a Liberal” – no New York Times, afirmou em 31 de Dezembro de 2009, que um dos efeitos do mercantilismo chinês foi a destruição de 1.4 milhões de postos de trabalho nos USA.

Posições completamente divergentes, como se constata.

No entanto, nalguns países asiáticos observou-se realmente um acréscimo de postos de trabalho ao mesmo tempo que se verificava aumento de exportações para a China. Coincidência? Correlação? Pode argumentar-se que é bem provável que tal se tenha ficado a dever ao aumento de outsourcing chinês em busca de mão-de-obra cada vez mais barata. Especulações que só o tempo permitirá, ou não, confirmar.


Uma dúvida parece estar a emergir


Uma mensagem / proposta parece evidente: A China prepara-se para partilhar a recuperação mundial e a divisão de mercados com o seu rival mais directo.

Se com a ex-URSS os USA mantiveram uma longa Guerra Fria, será que tudo se conjuga para manterem agora uma Paz Quente com a China?

Sem comentários:

Enviar um comentário