terça-feira, 21 de setembro de 2010

A estratégia económica chinesa ensaia a mudança e o mundo aguarda impaciente

A estratégia chinesa para o yuan, as matérias-primas, e a energia, sem esquecer o importante papel das forças armadas no cenário internacional, foi abordada em artigo anterior [1]. Também as relações entre a China e a Alemanha, e em particular o perigo da recuperação alemã demasiadamente dependente do “milagre económico chinês” já foram alvo de análise neste espaço [2].
Hoje, a reflexão incide na mudança estratégica que se parece vislumbrar na China. Num país onde o crescimento económico tem sido tão significativo e por tão longo período de tempo, uma mudança estratégica não tem só repercussões internas, interessa e afecta todo o mundo.
Visitemos, então, algumas áreas cruciais, estruturantes mesmo, onde se podem observar importantes opções estratégicas. Na China nada é deixado ao acaso, tudo é planeado. Quem pensar o contrário, não pode estar atento.

A tentativa de enterrar a imagem dos “baixos salários”

Durante décadas a China permitiu, ou fomentou mesmo, a imagem de país onde a mão-de-obra era abundante e barata.
Que é abundante ninguém duvida, pois a China conta com 1300 milhões de habitantes, dos quais 1000 milhões constituem a população activa. Daqui se infere que 300 milhões se encontram desempregados, cerca de 22% [3]. Não corresponde à realidade pensar que se trata unicamente de pessoas que não encontraram ainda ocupação. Muitos destes desempregados perderam, de facto, os seus postos de trabalho fruto de alterações importantes no tecido laboral [4]. Além disso, as autoridades chinesas terão também, e no curto prazo, de encontrar solução para cerca de 100 milhões de trabalhadores rurais que querem reconverter em urbanos.
Mas o esforço de actualização salarial no país é real [5], embora em média os rendimentos do trabalho continuem muito baixos quando comparados com os seus concorrentes e parceiros. Como referência, relevem-se os seguintes valores:
PIB (em triliões de US$): China – 8.791; UE – 14.953; USA – 14.256; Brasil – 1.995; Índia – 2.965; Rússia – 4.406.
PIB per capita (em US$): China – 6500; UE – 28213; USA – 46381; Brasil – 10296; Índia – 2972; Rússia – 15947. [6]
Para facilitar a comparação, os valores para Portugal são 233.4 mil milhões e 21800 US$, respectivamente.

Da produção em massa à qualidade e à especialização

Em 2009 a China ultrapassou os USA e a Alemanha em volume total de exportações. Segundo informações do próprio Departamento de Estatísticas da Alemanha, as vendas chinesas atingiram no ano passado 1.201 triliões de US$, enquanto que as exportações alemãs se ficaram pelos 1,121 triliões. Para se avaliar o que isto significa, diga-se que nos últimos 20 anos, as exportações chinesas aumentaram 20 vezes. Uma profunda preocupação para os alemães [7], dado que ninguém espera que esta tendência se inverta, nem que a Alemanha, ex-primeiro exportador mundial, recupere a posição perdida.
Mas a luta entre alemães e chineses não se resume aos montantes totais, desenrola-se violentamente batalha a batalha, mercado a mercado, produto a produto. Vejam-se, por exemplo, os seguintes casos ocorridos em 2009, só na indústria aumtomóvel:
- A justiça grega decide que o pequeno utilitário Noble não é um clone do famoso Smart, uma joint venture da Daimler e da Swatch, como a Mercedes pretendia [8];
- A BMW entrou com uma acção em tribunal para proibir a venda na Alemanha do SUV Shuanghuan CEO, alegando que se tratava dum clone do modelo X5 da marca alemã. Ganhou, mas não conseguiu parar as vendas do modelo chinês na Grécia e Itália, como pretendia [9];
- A Porsche viu-se confrontada no Salão Automóvel de Pequim com um clone do modelo Cayenne, produzido na China pela empresa Huatai, a um preço muito inferior. E não chega que os alemães afirmem que a qualidade e a segurança não se comparam com as do modelo original. Os compradores não se regem sempre pelos mesmos valores [10].

Em busca da ocupação de nichos

Os mercados de nicho, dadas as suas características de grande concentração de recursos, exigem estratégias muito peculiares tanto de defesa como de ataque. Os mercados ecológicos não podem ser apelidados de nicho na verdadeira acepção do termo, mas, em termos estratégicos, assemelham-se.
Proponho que nos debrucemos sobre três vertentes dessa tão actual participação com inequívoco impacte no terreno da Responsabilidade Social Comunitária: A Energia, em particular o aproveitamento da energia solar, e os Transportes, no sub-sector automóvel.
Até agora, em qualquer destes campos, a China tem-se destacado pelo recurso às tecnologias e meios de produção mais rentáveis, que não respeitam, como é conhecido, as recomendações das organizações ecologistas. Em particular relevo, encontra-se a produção de energia a partir de combustíveis fósseis, onde o carvão assume papel de negativo destaque, sabendo-se que o carvão representava em 2007, 70% da energia consumida no país [11]. Mesmo assim o governo chinês pôs em prática um agressivo plano para reduzir o impacte desta situação, mesmo em termos de segurança dos trabalhadores dessas minas (4,700 mortes só em 2006) – no dia 14.01.2008, um domingo, as autoridades anunciaram ter encerrado mais de 11,115 pequenas minas no país [12]. Apesar destas notícias, que foram bem recebidas pela comunidade internacional, continuam a surgir mensagens contraditórias que apontam no sentido da intensificação da exploração de carvão em super-minas, num plano que visa a abertura de 2º grandes minas até 2015 [13].

A energia solar

É consensual a ideia de que a exploração da energia solar é solução de futuro. Vários países, como Portugal p.e., anunciaram incentivos aos privados que optem pela instalação de soluções individuais deste tipo. Na Alemanha e no Japão, em particular nos casos da Siemens e da Sharp, os governos instituiram consideráveis apoios para que estas empresas apostassem no desenvolvimento de centrais fotovoltaicas [14], capazes de produzirem energia limpa em quantidade para justificar o interesse de outras indústrias na sua utilização. Gerou-se mesmo a ideia de que estas empresas estariam no topo destes investimentos. Esta é, contudo, uma parte da verdade – a indústria alemã está a deslocalizar esta produção para a China. A Alemanha continua responsável por cerca 50% das instalações de energia solar mundial, mas é a China que produz 50% dos produtos que alimentam esta indústria [15], e parece estar cada vez mais agressiva nesta investida [16].
Até parece que enquanto os países ocidentais continuarem a subsidiar as instalações de paineis solares, a produção chinesa, que exporta 70% do que fabrica, continuará a ser um “negócio da china”.

O sector automóvel

A China é um mercado muito importante para as exportações de carros de todo o mundo, em particular da Alemanha, onde a Audi, Mercedes, e BMW, continuam a alimentar a sede de luxo das novas classes com posses no país, e a VW encontrou um imenso filão no abatecimento de viaturas para a polícia e táxis, como refri em artigo anterior [17].
Mas a China, como já salientei no artigo que mesmo agora citei, já não se limita a ser a fábrica do mundo. Quer mais, aposta em joint-ventures como contrapartida negocial. Digamos que é “pegar ou largar” – quem quiser avançar com os benefícios da produção na China tem de facilitar acesso ao know-how. Pode imaginar-se o que isto significa para as grandes marcas alemãs que não podendo já satisfazer a procura chinesa a partir da Alemanha, e penalizados pelos elevados direitos de importação chineses, têm de instalar fábricas na China. E estamos a falar de AUDI A7, Mercedes S, e BMW 7, topos de gama, portanto.
E que dizer da GM envolvida em dramática luta pela sobrevivência? Estará em posição de exigir algo de significativo das autoridades chinesas? Não, claro.
Releve-se também o que se passa com as novas tecnologias. Conhecem-se os esforços dos grandes construtores no domínio da diminuição, ou messmo, independência dos combustíveis fósseis.
O mundo ainda desconhece uma empresa chinesa produtora de baterias para telemóveis, a BYD – Build Your Dreams [18] – que, a partir de 2003 passou a investir na fabricação de automóveis. Em 2008 iniciou a comercialização do primeiro modelo produzido em massa, e em 2009 vendeu mais de 448 mil carros na China. Uma aventura? Não parece, pois em 2008 Warren Buffet, que não costuma desperdiçar dinheiro, investiu 230 milhões US$ por 10% da BYD.

O feitiço e o feiticeiro

Os empresários de todo o mundo, em particular os alemães, queixam-se do plágio e contra-facção chineses.
Nos subsectores atrás citados, os industriais ocidentais continuam a argumentar que as cópias chinesas são mais baratas porque incorporam componentes de qualidade inferior e não respeitam as regras de segurança.
É por demais conhecido o drama dos produtores de software que não vêm respeitados os direitos de autor como pretendem. Nesta indústria, a situação ainda se torna mais difícil pelo facto da legislação chinesa ser bastante diferente da que se aplica em outros países [19].
No entanto, e apesar de todas as lamentações e protestos, os empresários ocidentais hesitam em levar as companhias chinesas a tribunal, por duas elementares razões: não acreditam nos tribunais locais, e temem eventuais represálias.
Terão algum dia coragem e condições para se retirarem do gigantesco mercado chinês?

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NOTAS:

[1] http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/09/china-e-o-mundo-em-guerra-pelas.html
[2] http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/08/china-e-o-mundo-alemanha-01.html
[3] http://economia.publico.pt/Noticia/desemprego-na-china-afecta-22-por-cento-da-populacao-activa_1455269
[4] http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/08/os-custos-de-producao-na-china.html
[5] Em Junho deste ano, o salário minímo em Pequim passou a ser 960 yuans, um aumento de 20%. Este valor corresponde a cerca de € 114 ou 140 US$, segundo a agência noticiosa Xinhua. http://www1.folha.uol.com.br/mercado/784733-salario-minimo-chines-continua-subindo-em-2010.shtml
[6] Informações recolhidas em Setembro de 2010 em Wikipedia.
Veja aqui: China negoceia a compra de 150 novos Airbus, que pode chegar a 200, no valor de 16 mil milhões de euros: http://www.oje.pt/noticia.aspx?channelid=C32FD067-0BC2-4366-9A04-208E8B2DB854&contentid=FEA9442D-E537-45E4-927D-E8C704FB5CC1
e aqui, o “dia histórico” da entrega do primeiro Airbus A320 produzido na inteiramente na China: http://news.bbc.co.uk/2/hi/business/8114464.stm
[7] http://g1.globo.com/Noticias/Economia_Negocios/0,,MUL1484433-9356,00-CHINA+SUPERA+ALEMANHA+E+E+O+MAIOR+EXPORTADOR+DO+MUNDO.html
[8] http://www.noticiasautomotivas.com.br/justica-grega-diz-que-chines-noble-nao-e-um-clone-do-smart/
[9] http://www.noticiasautomotivas.com.br/bmw-vence-shuanghuan-ceo-nao-podera-entrar-na-alemanha/
[10] http://www.noticiasautomotivas.com.br/huatai-marca-chinesa-faz-um-clone-do-porsche-cayenne-para-o-salao-de-pequim/
[11] http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u363108.shtml
[12] idem
[13] http://www.capitalvue.com/home/CE-news/inset/%4010063/post/1202723
[14] The Economist tem revelado amiúde os valores suportados pelos contribuintes alemães por efeito da aposta de Angela Merkel na energia foto voltaica. http://www.economist.com/node/15213817%3Fstory_id%3D15213817
Apesar do esforço exigido aos contribuintes alemães, que alguns analistas estimam em € 14 biliões ao longo dos próximos 20 anos, só para os investimentos feitos em 2009, hoje já se questiona parar com esta ajuda, talvez por efeito da própria crise económica que afecta a Alemanha.
http://www.dw-world.de/dw/article/0,,5279253,00.html
[15] http://www.greenchipstocks.com/articles/crabs-are-good-for-you/1057
[16] http://www.gstriatum.com/pt/china-cresceu-150-na-producao-de-modulos-solares/
[17] http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/09/china-e-o-mundo-alemanha-02.html
[18] http://en.wikipedia.org/wiki/BYD_Auto
[19] http://www.gov.cn/english/laws/2005-08/24/content_25701.htm

2 comentários:

  1. Vitor,

    concordo em geral com as teses que defendes.

    Há, no entanto, pontos que quero comentar.

    1. "a China conta com 1300 milhões de habitantes, dos quais 1000 milhões constituem a população activa. Daqui se infere que 300 milhões se encontram desempregados, cerca de 22%".
    Isto não está correcto. Na definição habitual a diferença entre os 1.300 (população total) e os 1.000 milhões (população activa) são os "inactivos", ou seja, crianças, velhos e outros incapacitados para o trabalho.
    A taxa de desemprego (22%) deve ser aplicada à população activa o que daria 220 milhões de desempregados e 780 milhões de empregados.
    Eu também vi esta notícia mas parece-me um pouco duvidosa.

    2. A valorização do PIB Chinês feita com base no câmbio do Yuan versus dolar subvaloriza o resultado já que esse câmbio não reflecte o real poder de compra interno.

    3. No que toca às energias alternativas há que acrescentar que a China é já o maior fabricante de turbina eólicas do mundo.

    4. Em síntese eu diria que a metamorfosa da China é a seguinte: usou a mão de obra barata para se converter no maior mercado do mundo e na maior reserva de capitais para investimento. Agora é nessa condição que dita as suas regras.

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  2. Obrigado Fernando pelos comentários.

    Porque os considero interessantes para quem leia este post, transcrevo para aqui o que escrevi no fb:


    Fernando,
    Parece-me evidente, e até já escrevi várias vezes sobre isto, que os alemães não podem deixar de aproveitar esta oportunidade soberana.
    Há, no entanto, que relevar alguns detalhes desta euforia:

    1. O PIB está a ser influenciado, sem ...dúvida, mas não tanto como possa parecer à primeira vista. Razão? Algumas fábricas AUDI, Mercedes, e BMW já não conseguem satisfazer os pedidos chineses e estão a deslocalizar a fabricação para a China, onde encontram mão-de-obra em sobra, matéria-prima sem dificuldade,e, além disso fugindo às elevadas taxas de importação. Ora, a produção alemã na China não afecta o PIB alemão;

    2. As exportações crescentes para a China começam a preocupar os industriais alemães que já chamam a atenção para e excessiva dependência do "milagre chinês", que pode vir a conhecer algum revés.

    Não faz sentido aqui justificar estas afirmações, coisa que já fiz nos textos que publiquei sobre a China e a Alemanha.

    Vide http://lugaraopensamento.blogspot.com/
    em especial, sobre o sector automével, o post de ontem.See More

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