sábado, 16 de outubro de 2010

E quando se acabar o petróleo, comemos o quê?

Por: Vítor M. Trigo
vítor.trigo@gmail.com
16 Outubro de 2010

Na sequência da primeira crise do petróleo produziram-se muitos estudos que parece não terem interessado o mundo, em particular os políticos. Recordo por exemplo “Eating Oil” [1], que tão profusamente foi utilizado pela Academia um pouco por todo o lado [2]. Lamentavelmente nada aprendemos com a lição.
Na trilogia “Alterações Ambientais”, que acabei de publicar neste blog, procurei reflectir sobre o “pico do petróleo” e a produção de energia em geral. Visitei duas conhecidas teorias, a Olduvai e a Beyond, e uma obra de ficção “Uma Verdade Inconveniente” que confrontei com “A Ficção Científica de Al Gore”. Em todas encontrei uma certeza – a produção de petróleo começou a declinar e extinguir-se-á dentro de 25 a 30 anos.
Hoje vou debruçar-me sobre a alimentação, ou melhor, sobre os bens alimentares.

A produção

O sistema alimentar nunca esteve tão dependente do petróleo. Chegámos a um ponto completamente irracional e insustentável. Vamos ter de mudar sob pena de resultados catastróficos. Vejamos, para que não subsistam dúvidas sobre a gravidade da situação actual:
• A gasolina e o diesel são indispensáveis para os tractores e outros veículos agrícolas, tanto na plantação como na pulverização, colheita, e transporte;
• As fábricas de alimentos dependem do fornecimento just-in-time de produtos frescos e congelados, e da produção e distribuição de aditivos (vitaminas, minerais, emulsionantes, conservantes, corantes), muitos deles derivados do petróleo, mas todos carentes do petróleo para a sua entrega;
• As embalagens que usamos para disponibilizar os produtos alimentares – caixas, latas, potes - são essencialmente produzidos à base de petróleo, bem como etiquetas, bandejas, tampas, etc.;
• Até nós, para adquirirmos os bens alimentares aos retalhistas, precisamos de petróleo para lá chegarmos.

A distribuição

Mesmo a mais elementar análise ao custo-benefício que envolve colocação de bens alimentares no consumidor e a energia consumida para o efeito, se revela completamente ineficaz.
Atente-se por exemplo num estudo feito no Reino Unido [3], que mostrou que as importações de alimentos e alimentação para animais ascenderam a 83 milhões de toneladas-quilómetro (t-km). Para tal foram necessários 1.6 biliões de litros de combustível, o que significa, numa estimativa conservadora de 50 gramas de CO2 por t-km, qualquer coisa como 4.1 milhões de toneladas de CO2 emitidas [4] [5]. Releve-se que se detecta, de 1978 a 1999, um aumento de 16% nas quantidades transportadas e de 50% nas distâncias percorridas, o que indicia que a globalização tornou o mundo mais plano.
Estes valores tornam-se ainda mais absurdos ao saber-se que em 1997 o Reino Unido exportou 270 milhões de litros de leite líquido e importou 126 milhões. Ou no que se refere a leite em pó exportou 153 mil toneladas e importou 23 mil [7]. Mais ainda, nos últimos 20 anos o Reino Unido duplicou as importações de leite e nos últimos 30 quadruplicou as exportações [8].
E para que não se pense que o negócio do leite é caso único, acrescente-se o que se passou com as aves (importações de 61,400 t dos Países Baixos e exportações de 33,100 t para a Holanda), com os suínos (importações de 240,000 t e exportações de 195,000 t), e com os cordeiros (importações de 125,000 t e exportações de 102,000 t) [9]. Qualquer leigo concluirá sem dificuldade que esta situação é insustentável, ilógica, e bizarra. Só uma fonte energética muito barata a poderia suportar, isto mesmo sem pensar nas emissões de CO2.

O (absurdo) desperdício de energia

Ainda com referência no Reino Unido, um estudo de 2001 [10] verificou que transportar 5 kgs de batatas sicilianas para o Reino Unido (2,448 milhas) significava emitir 771 gramas de CO2. Batatas sicilianas transportadas de avião para o Reino Unido?
Absurdo? Mas verdadeiro, e longe de ser caso único.
Por exemplo, cada caloria de alface importada dos USA para o Reino Unido representa um gasto de 127 calorias no combustível do avião usado no transporte. Como cada caloria de espargos importados do Chile consome 97 calorias de combustível, ou ainda, cada caloria de cenoura importada da África do Sul consome 66 calorias na viagem.
Para que não se pense que estas aberrações estão sempre ligadas ao Reino Unido, que aliás sempre nos habituámos a ver como “desalinhado”, cite-se o que se passa com o negócio de ketchup na Suécia. Uma verdadeira loucura. O que a seguir se relata, resulta dum estudo efectuado pelo Instituto Sueco para a Alimentação e Biotecnologia em 1996 [11]. No seu trabalho, os autores tomaram em consideração os insumos para a agricultura, o cultivo de tomate e a conversão em pasta em Itália, o processamento e empacotamento do colar e outros ingredientes do ketchup, e o armazenamento e retalho na Suécia – num total de mais de 52 etapas de processamento e transporte! Eis algumas revelações surpreendentes:
• Os sacos que os italianos utilizam para o acondicionamento asséptico da polpa de tomate foram produzidos nos Países baixos;
• As garrafas utilizadas no empacotamento, efectuado na Suécia, foram produzidas no Reino Unido, ou na Suécia, com materiais importados do Japão, Itália, Bélgica, USA e Dinamarca;
• As tampas das garrafas, em polietileno de baixa densidade, foram produzidas na Dinamarca;
• Não foram abordadas as questões relacionadas com rotulagem, colas, tintas, etc., obviamente importadas como os restantes componentes.
Este exemplo é demonstrativo da dependência alimentar em que nos encontramos, no que diz respeito a deslocações internacionais. Escusado será relembrar que, na maioria das situações, para os adquirirmos dependemos do combustível usado nos nossos carros para nos deslocarmos aos postos de venda.
Por mais optimistas ou despreocupados que sejamos, isto não é sustentável, nem sensato, e muito menos inteligente.

O (anunciado) fim do petróleo

Quase dois terços das reservas mundiais de petróleo encontram-se no Médio Oriente, em especial na Arábia Saudita, Irão e Iraque [12]. De 1980 a 1998 houve um aumento de 11,2% na produção de crude, de 59.6 para 66.9 milhões de barris diários, situando-se actualmente nos 25 biliões por ano [13]. A aritmética mais elementar leva-nos a concluir que, mantendo-se constantes os níveis de consumo, as reservas de petróleo conhecidas (cerca de 1 trilião de barris) esgotar-se-á por volta de 2040 [14]. Mas o mundo sabia o que se iria passar – as crises petrolíferas de 1970, 1980 e 1991 foram claras, não deixando margem para dúvidas [15].
Antes de se extinguir, o petróleo irá rarear, e aumentar de preço. O aviso solene, para os mais desatentos, foi feito ainda no século passado [16]. As arenas mais consumidoras de petróleo continuam, dir-se-á agora passados mais de 13 anos após a obra de Campbell, a alimentação, os transportes e o aquecimento. Dentro em breve, estas três áreas irão competir pela matéria-prima comum que utilizam.
Quem irá sofrer em primeira instância? Os países mais pobres. Quem haveria de ser, afinal?
Iremos passar por uma crise inevitável de alimentação? Sem rodeios apelidada de fome mundial generalizada?
É bem provável. Mas não é inevitável.

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NOTAS:

[1] Green, B. M. (1978): Eating Oil - Energy Use in Food Production, Westview Press, Boulder, CO.
Artigo também muito interessante e detalhado em: http://www.sustainweb.org/pdf/eatoil_sumary.PDF
[2] Por esta chave de busca (eating oil) encontram-se com facilidade, na rede, centenas de trabalhos académicos e jornalísticos bem esclarecedores.
[3] O Reino Unido é um caso bem peculiar, visto as importações e exportações de bens alimentares recorrerem a meios terrestres, marítimos e aéreos.
[4] Os dados para transportes aéreos e marítimos podem ser encontrados em Guidelines for company reporting on greenhouse gas emissions. Department of the Environment, Transport and the Regions: London, March 2001.
Os dados para camiões podem ser encontradas em
Whitelegg, J. (1993): Transport for a sustainable future, the case for Europe, Belhaven Press, London
e em
Gover, M. P. (1994): UK petrol and diesel demand, energy and emission effects of a switch to diesel. Report for the Department of Trade and Industry, HMSO, London
[5] Estima-se [6] que a emissão de CO2 imputável à produção, transformação e distribuição dos alimentos consumidos por uma família inglesa de 4 pessoas seja cerca de 8 toneladas por ano
[6] BRE (1998): Building a sustainable future, General information report 53, energy efficiency best practice programme, Building Research Establishment, Garston, UK
[7] Lobstein, T. and Hoskins, R. (1998): The Perfect Pinta, Food Facts No. 2, The SAFE Alliance
[8] FAO (2001): Food Balance Database. 2001, Food and Agriculture Organisation, Rome em www.fao.org
[9] Campbell, Colin J. (1997): The Coming Oil Crisis. Multi- Science Publishing Co. Ltd
[10] Com base em dados da UKROFS e de um inquérito efectuado em supermercadis de Junho a Agosto; nas tabelas de distâncias para milhas aéreas em www.indo.com/cgi-bin/dist; e ainda no impacto ambiental dos fretes aéreos em Guidelines for company reporting on greenhouse gas emissions. Department of the Environment, Transport and the Regions, London, March 2001
[11] Andersson, K. Ohlsson, P. and Olsson, P. (1996): Life Cycle Assessment of Tomato Ketchup, The Swedish Institute for Food and Biotechnology, Gothenburg.
[12] EIA (2001): World Oil Market and Oil Price Chronologies: 1970 – 2000. Department of Energy’s Office of the Strategic Petroleum Reserve, Analysis Division, Energy Information Administration, Department of the Environment, USA, também disponível em www.eia.doe.gov
[13] Green Party USA (2001): World crude oil reserves – Statistical information. Based on data from the Oil and Gas Journal and the Energy Information Agency. Também disponível em http://environment.about.com/library/weekly/aa092700.htm
[14] Medea, European Agency for International Information (2001): Oil Reserves. Também em http://www.medea.be/en/
Fleming, David (2001): The Great Oil Denial, Submission to the UK Energy Review, ou em
http://www.cabinetoffice.gov.uk/innovation/2001/energy/submissions/Fleming
Para um pouco mais de detalhe acerca da evolução na produção de petróleo: http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/10/alteracoes-ambientais-parte-1-de-3.html
http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/10/alteracoes-ambientais-parte-2-de-3.html
http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/10/alteracoes-ambientais-parte-3-de-3.html
[15] EIA (2001): op. cit.
[16] Campbell, Colin J. (1997): op. cit.

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