Por: Vitor M. Trigo
vítor.trigo@gmail.com
27 Outubro de 2010
Quase todos os indicadores conhecidos mostram que a China parece ter passado incólume à crise global de 2008. De facto, o sistema que as autoridades pensaram e montaram (deve reconhecer-se que as coisas na China não acontecem por acaso, planeiam-se), resistiu muito bem ao choque de stress real a que foi sujeito. Mas convém também recordar que a China dispõe de recursos que sabe utilizar com mestria, nomeadamente a cotação do yuan, articulando-a com as restantes iniciativas estratégicas, como foi referido noutros artigos neste blog [1].
No entanto, o modelo que fez despertar o país e arrancar da pobreza milhões de pessoas caminha para o esgotamento, se as autoridades decidirem ser vítimas passíveis do futuro. Vários são os caminhos escolhidos para ultrapassar o que poderia vir a revelar-se um impasse que a China não pode tolerar [2]. Um deles, ainda pouco ventilado neste blog, passa pelo aumento do consumo interno que permita aliviar o país da enorme dependência das exportações, ou, se se preferir, mais blindado a crises exteriores. Mas esse crescimento tem de ser sustentável, o que não é tarefa fácil num país com tão grandes assimetrias, com fortíssimas culturas milenares, e um sistema político ainda monolítico.
Índices de Consumo na China
De acordo com a consultora McKinsey [3], o consumo privado na China totalizou 890 bUS$ em 2007, que colocou a China como o quinto maior mercado consumidor do mundo atrás dos USA, Japão, UK, e Alemanha. Este valor correspondeu a cerca de 36% do PIB. Comparando-o com as maiores economias mundiais, e ponderando as populações em causa, constata-se que corresponde a metade do equivalente nos USA e a cerca de 2/3 do Japão e da UE.
Contudo, ao mesmo tempo que o PIB chinês continua, há cerca de vinte anos, a mostrar crescimentos de dois dígitos, o consumo interno evidencia um decréscimo de 15 pontos percentuais desde 1990. Estes abrandamentos sendo normais em qualquer país em acelerado desenvolvimento, indicia na China justificada preocupação, pois confirma a extrema dependência do país às exportações. Refira-se, por exemplo, que no Japão e na Coreia do Sul, após a WWII, embora se tenham verificado quebras percentuais no consumo privado, este nunca desceu abaixo de 50% dos PIB respectivos.
Índices de Poupança na China
As famílias chinesas têm uma grande tradição de poupança – cerca de 25% do rendimento disponível, ou seja, cerca de seis vezes a taxa equivalente nos USA e três vezes a do Japão [5]. Um valor demasiadamente elevado para um mercado que pretende desenvolver a vertente interna. Algumas fontes apontam mesmo que a poupança familiar continua a crescer – 20% do PIB em 1981, 30% em 1988, e provavelmente cerca de 40% actualmente [6].
Um estudo do Global Institute da Mckinsey referiu, com base em dados do Gabinete de Estatísticas da China, como evoluíram as poupanças familiares entre 1996 e 1998, em percentagem do PIB [7]: Famílias Rurais: 18%, 23%, 26%; Famílias Urbanas: 19%, 19%, 21%. Efeitos da tradição onde ela é mais forte? Mas o país não pode crescer a velocidades tão distintas.
Bom, mas para além da tradição, existe uma razão que pode explicar os elevados índices de poupança – a insegurança das famílias. O sistema de assistência social e de reformas é ainda muito débil, e os seguros privados não fazem parte das opções disponíveis. Como tal as famílias vêem-se compelidas a assegurar a sua segurança. Melhorias nestas áreas, por parte do estado, poderão alterar o cenário – a diminuição da ansiedade pessoal quanto ao futuro poderá libertar os chineses para o consumo. Mas isso conduz a uma nova questão – quem suportará os novos custos de segurança social, da saúde, da previdência, das reformas por invalidez e velhice? O financiamento só pode vir das quotizações das empresas, das classes média e média alta, e da despesa pública.
Distribuição dos produtos e vendas a crédito
Para além das medidas estruturantes que o governo possa tomar para estimular o consumo privado, há que reformular toda a arcaica rede de distribuição de bens. A Mckinsey estima que o retalho, último elo da cadeia de fornecimento para mais de metade dos 1.3 biliões de chineses, só é responsável por cerca de 18% do consumo. Nas zonas urbanas este valor sobe para cerca de 50%, mas mesmo assim encontra-se muito abaixo das ditas sociedades desenvolvidas.
No que ao crédito diz respeito, a situação chinesa também é peculiar, mesmo quando comparada com outros BRIC. Na China calcula-se que se fique por 3% do PIB, enquanto a Rússia atinge 7%, e o Brasil 12%. Então em hipotecas de casa própria os valores da China comparados com os USA são inequívocos quanto à dinâmica dos mercados: 11% na China contra mais de 80% nos USA! [8]. Estamos, de facto, perante mercados em estados de desenvolvimento muito distantes.
Qual o futuro do consumo na China, afinal?
A actual economia chinesa é capital intensiva. Até ver, pode dizer-se que a aposta em empresas médias e pequenas têm merecido pouca atenção. Nas últimas duas décadas, e de novo segundo a McKinsey, o peso das empresas no PIB passou de 14% para 22%, ao passo que o valor referente às famílias desceu de 72% para 56%. Esta tendência não poderá manter-se.
É lógico pensar que a China não possa esperar desenvolver o mercado interno sem tomar medidas concretas que estimulem os salários, os serviços, as PME, e… os mercados de capitais. Este último ponto é muito sensível, dado o regime político vigente. Esperar que o consumo aumente para níveis sustentáveis, e de acordo com os rácios de equilíbrio desejados com as exportações, somente através do crescimento do PIB não é solução – mesmo com o PIB a crescer a dois dígitos, nos últimos anos o emprego só avançou 1%.
As mudanças de fundo
Dito isto, o país parece exigir uma profunda reforma política. Este é o grande óbice. As medidas económicas de curto prazo não indiciam, por enquanto, essa via. Quando se consultam os mapas de investimentos chineses, com facilidade se verifica que perto de 90% se destinam a infra-estruturas. É certo que o país precisa delas, pois mesmo após o gigantesco desenvolvimento das duas últimas décadas, as carências são ainda muitas. O preocupante, no que diz respeito ao incentivo ao consumo, é que dificilmente se descortinam nas grandes linhas do investimento previsto mais de 7 a 8% dedicados ao consumo privado.
Nos tempos mais recentes, a China tem surpreendido pela capacidade de promover reformas económicas radicais capazes de alcançarem os desafiantes objectivos nacionais a que o país se propôs.
Mas esta é uma mudança de paradigma, que exige abandono de algumas práticas inerentes ao regime político vigente. Conseguirá a China dar mais passos significativos no emblemático e até agora eficaz “um país, dois sistemas”? Irá a China surpreender os teóricos das ciências económica e política, obsoletando tudo o que tem populado os manuais clássicos?
Eu acredito que esta última hipótese pode vingar.
PS: Que implicações terá tudo isto no mundo inteiro? Esta análise será tema de artigo a dedicar exclusivamente ao tema.
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NOTAS:
[1] http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/09/estrategia-economica-chinesa-ensaia.html
http://lugaraopensamento.blogspot.com/2010/09/china-e-o-mundo-em-guerra-pelas.html
[2] Ver declarações do Professor Fan Gang, influente economista chinês: http://www.project-syndicate.org/commentary/gang11/English
[3] http://www.mckinsey.com/mgi/mginews/unleashing_chinese_consumer.asp
[4] What’s Your Consumption Factor? (artigo de Jared Diamond, publicado a 2 Janeiro 2008 no New York Times)
[5] Em www “Why is China saving rate high” encontra-se interessante reflexão sobre o tema
[6] http://finance.mapsofworld.com/savings/china/rates.html
[7] http://www.ucm.es/info/eid/pb/China2000.pdf
[8] Low Consumer Debt In China, 03 Agosto de 2010, http://www.parapundit.com/archives/007379.html
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